Crónica João Pais #13

João Pais, Cronista

O vestido da noiva

Fevereiro de 2020, dia 18, ali à hora do lanche para ser mais preciso, ficámos a saber as cores que vestirão a menina dos olhos do nosso Falcão, a menina que quereremos ver surgir na curva bem deitadinha, sair despencada recta fora, saracoteando por entre candidatos ao molho e atirar-se a um TOP 5, que nisto de pedir temos de ser brutos pois pagamos o mesmo.

O ano passado era linda e fácil de apanhar nos relances possíveis que nos oferecia a realização.
Este ano terá de ser igual.

Lá está o laranja KTM, acompanhado de um azul céu.
Pelo meio uma faixa branca com os dizeres ‘simply Cola’.
Ou deveremos ler … ‘simply Miguel‘ ?
Linda e fácil de ser seguida, pois maior e maior se vai tornando esta multidão, o Miguel agarrou-nos e não nos larga, o Belmonte o Vitor e o Praia esmiúçam-nos cronos e estratégias e a pessoa não sai da TV.
De todos os aparelhos de TV que se querem ligados em todo o lado, em todo o Portugal.
Viram-na?
Adoptem-na, memorizem-na, eu ajudo.

Recordo o meu bairro.
Que lindas eram.
A Gilera amarela do PP, a RD50 do Paulinho, a Hércules do Orlando e a Vespa do Jomané, que lindas eram, que lindas eram todas elas.
A Norton 500 dos manos Pedro e Jorge, a CB50 do Anéqui, que magia traziam elas, pequenos monstros de infinita liberdade.

Os anos eram os que iam correndo na década de setenta e oitenta, se bem se recordam tempos de sonhos selvagens em meninos que chegavam a homens.
E elas ali, suas motos.
Vestidas em suas cores, em seus trajes de noivas que apanhavam seus homens, imagino quantos milhares delas estarão neste momento a ser recordadas pelo leitor, em viagem de lágrima ao canto do olho, onde terá terminado o namoro?… onde terá começado a vida de adulto que nos vai roubando e calendarizando o brilho no olhar? … que nos vai esquartejando os sonhos arrumando-os nas gavetas da memória?

Perdoem-me o devaneio, estava a falar do dia de ontem e perdi-me na importância da cor, da alma, das formas incrivelmente sensuais que certos engenheiros passaram da banqueta dos esquissos para a produção na linha de montagem.
De que cor era o vosso sonho, qual era o nome da noiva?

Mais logo, aliás já já de seguida, estaremos, aqueles que podem, especados em frente ao mundo que nos anunciará a cor, o corte e a costura daquela que será a noiva de todos nós, de uns em sonho de glória, de outros no doce regresso àquela respiração ofegante dos momentos em que nela poisávamos o coração.
Tão à vontade falo porque nunca uma tive, nunca uma soube tornar minha, assim me concedendo espaço privilegiado de observador.

Ironia das ironias, parece-me reservado lugar de bancada em todo este universo que para tantos por aqui é paixão pura, e no entanto em nada tal me entristece, bem antes pelo contrário, que melhor terreno poderia pedir para acelerar por onde sei, estradas de parágrafos, vírgulas pontuando emoções, reticências perante a enormidade do que observo?

Dizia-me um amigo, que deve ser entendido nestas coisas de velocidades pois é piloto de centenas de quilómetros por hora em suas jornadas de comandante de avião, dizia-me esse amigo que é também de correr forte e feio a pé em maratonas que em nada o assustam, que a noiva nunca pode ir à pendura pois rasga o véu na roda traseira.
Disse-me isso com um sorriso misterioso, disse-me isso sabendo que eu de motos nada percebo, e assim destas noivas menos então.
Matutei no assunto, porque nestas subliminaridades gajo que é gajo não pode vacilar, e aquilo haveria de ter assunto a escavar, não fosse eu fraco ou de desistência precoces.
Regressei ao dia de ontem com seu fato de noiva, regressei às décadas deixadas lá atrás, com suas adolescências enamoradas.

Em nenhum de tais momentos vi a noiva à pendura, antes via-a deitada e oferecida em amor sem tréguas, levando todos estes cavalheiros que um dia lhes foram apresentados, a viagens de loucura pelas ruas das cidades, pelas estradas da província, por corridas sem lei nem juízo, vi essas noivas serem elevadas ao altar da eternidade, gravando-se em cores e em cada detalhe seu na memória mais preciosa desta gente que elas escolheram.
Por isso mesmo estou à vontade, fui eleito apenas como espectador de tão bizarra e forte paixão.

Por isso, quiçá apenas por isso, escrevo solto de tristezas ou preconceitos, admirando com liberdade toda esta gente que vou aprendendo a conhecer cada vez melhor.
Quando alguém que se me depara no caminho, fruto deste espaço de prosa livre, quando esse alguém me pergunta que noiva namoro, nem gaguejo ao responder que a ela nem fui apresentado, quando esse mesmo alguém me pergunta porque escrevo sobre elas então … lembro-lhe o tamanho do desassombro de quem não renega a beleza.
Uns amarão correr.
Outros dissertar sobre esse amor.

Fevereiro de 2020, dia 18, ali à hora do lanche para ser mais preciso, ficámos a saber as cores que vestirão a menina dos olhos do nosso Falcão, que bom foi ver a noiva chegar.
Ou não?