Crónica João Pais #22

João Pais, Cronista

Confinados mas…

Livres de ser livres.
1974, Abril, 25.
Todos conhecemos a data, alguns vivemo-la ao vivo, a cores e escutando o som das botas que marcharam até ao Largo do Carmo.
Uns graúdos, outros miúdos, outros nem existindo ainda mas sabendo-lhe a história, aquela data abriu as portas e escancarou as janelas da liberdade.

Quantos desse lado que me vão lendo, não se recordarão dos tempos seguintes, em que cavalgaram seus dias livres numa explosão de geometrias velocipédicas, buscando cada cidade, cada bairro e cada rua seus cavaleiros andantes, galopantes?… percorrendo em duas rodas o caminho do ar livre, cabelos ao vento que capacete não era obrigação, levando à pendura namoradas ou amigos da algazarra no alcatrão.
Quantos duelos ao pôr-do-sol não se terão feito de semáforo a semáforo, do São José à Boca do Inferno, um cinema e uma esplanada, quantas vezes da Praça de Londres ao Santo António, da Piscina ao Aeroporto?

Hoje é 4ª feira e a crónica deveria ter sido escrita ontem, desculpem-me o prego, esse embaraço que era uma acelaradela sem a mudança metida, memórias de uma Casal de 5, certo?.. cuidados redobrados a sentir a coisa engrenada, era proibida essa patada, esse prego que era um mundo de ninguém em que a potência era barulho comprometedor.
Já antes por aqui, num dia de viagem ao passado vos falei nalguns,
nos Cavaleiros da Liberdade Nunca Antes Experimentada.

Olhemos aos dias de então, os cabelos eram compridos, o capacete andava pendurado no braço, o descanso lateral era um must, um cavalinho era sinónimo de vontade de viver, a vida acelerava-se, crescia-se das 50 cc para as 125, depois as dois e meio, 500 era um motão que até abananava, ver uma 1000 era de especar e apanhar o queixo, não havia fotos tiradas a correr, antes pelo contrário, aquilo era gastar o rolo primeiro e esperar a ida à loja, a revelação, chegava a passar um mês desde o clique até ao baque de ver a obra gravada para a posteridade.

A vida meus senhores era vivida a uma velocidade alucinante mas a preto e branco nas memórias, era talvez dez vezes mais rápida que hoje, mas paradoxalmente mais pausada, cada momento de liberdade e de conquista era vivido e saboreado em bando, como aquelas presas grandes que distraem bandos de leões por horas, não havia fast-food, tudo era mais “peace and love”, uns dias, correrias loucas ao Dois, noutras noites, perdoem-me referências tão locais, mas quem não conhece o Dois, quem não saltou a grade atrás do Seixas?… Aquilo era como o Horta da Fonte no Cartaxo ou o Kiss em Albufeira, a malta cresceu a conhecer o nome às coisas ‘ de não perder ‘, tudo durava, durava e durava, a entrada dos Liceus parecia o parque do Autódromo em dia de MotoGP.

Olhemos aos dias de hoje.
Pela primeira vez na vida de todos nós, creio, uma pandemia obriga-nos a ficar em casa, andamos na rua mascarados, enluvados, navegamos solitários, fugimos ao encontrão e não queremos gente por perto, tudo ao contrário dos tempos trazidos na liberdade daquela madrugada e no entanto …

Que se aproveite para viajar, busquem-se as velhas fotografias sacadas pelas Kodak’s, aqueles momento eternizados por pequeníssimas molduras brancas nos rectângulos de papel, chamemos os nossos e contemos-lhes um pouco de quem éramos naqueles tempos, de como fazíamos com a idade deles, de como aguardávamos meio parvos que telefone de casa fizesse trimmm trimmmm, e que de entre todos os lá de casa o telefonema fosse para nós , de como éramos obrigados a murmurar baixinho nossos namoros e mais baixinho ainda em se tratando de coisas ilícitas.
Lembro-me de uma Caballero, de uma Norton 500, de uma Vespa e mais uma Gilera, das RD’s, CB’s e DT’s, esse mundo de letras aos pares tinha muito que se lhe dissesse, cada um puxava a brasa à sua amada, lembro ainda uma Laverda, cruzes, que raridades nos trazia aquele nosso bairro.

2020, Abril, 25, vem aí o dia.
Por garantido temos que será dia, mais um, de ficar em casa, de olhar ao passado e nele buscar um pouco do ânimo e do sonho que nos trouxeram aqui, busquemos nas velhas motos da nossa infância que nos levaram em tardes destravadas por ali fora, busquemos nelas um pouco de nós, respiremos fundo com um sorriso de homem e de mulher livres e devagar, devagarinho, comecemos a desenhar um futuro onde a liberdade conquistada não seja gasta em tanto assunto e com tanta velocidade, e onde a beleza do ângulo de um cavalinho não mereça mais que um emoji e um fugaz momento numa qualquer rede social.
Vamos pensar nisso?