Crónica João Pais #33

João Pais, cronista

Do complexo mundo dos heróis

No romance ‘A Morte de um Herói’, Frank Ronan traz-nos logo no início o relato de um sensualíssimo descapotável azul claro a voar penhasco afora, levando consigo do mundo dos vivos nem mais nem menos que Rory Dixon.

Imagino que não estejam a ver quem é a pessoa, mas uma coisa vos garanto, lendo o livro perceberão o gabarito de semelhante personagem, um ser inigualável aos olhos dos seus mais próximos, isso e nada mais que isso, mas o suficiente para a justiça do epíteto, o homem era de escala imbatível em meio a uns quantos deles.

Mas terá Dixon morrido efectivamente?

Não, óbvio que não, o simples facto de estarmos por aqui neste momento a esmiuçar o assunto do voo do seu carro é prova provada de que assim não será.

Pensamos nele, logo ele existe.

Os heróis não morrem, pois então, fica-lhes vedada essa saída do terreno, por imposição de diálogos mil onde comparecerão após o seu fim final, passe a redundância mas é para lhe dar ênfase.

Posto isto … vamos então trazer à liça uns quantos deles.

Heróis que agarramos em conversas intemporais.

Marc Marquez, o herói dos saves, das curvas deitado e do MotoGP também, Marc, indubitavelmente um herói, partiu um braço como o comum dos mortais e foi ao ‘quirófano’ arranjar o estrago. Quatro dias depois, quando qualquer um de nós estaria ainda a contar os minutos para a visita da tarde, ali por entre as quinze e as dezasseis, quatro dias depois andava o nosso herói já equipado de extraterrestre a fazer curvas a duzentos e tal, isto depois de um molho de flexões com a asa partida para os doutores dizerem que sim senhor pode seguir. Na altura, tenho testemunhas, disse que se o raio do cerveri conseguisse terminar a corrida não era homem não era não senhor, teria de ser bicho de deus.

Não terminou afinal o que nem começaria, a malta embasbacou com tamanha garra, mas bracinho pr’áquilo que era duro e de exigências pouco complacentes, tá quieto ó mau. Disse ainda na altura este que vos escreve, que se houvesse pinga de juízo nas cabecinhas de um ror de gente, aquele fim-de-semana era a caldos de galinha e mezinhas da avó, a ver se para Brno se dava a coisa. Afinal nem caldos, nem juízo nem Brno, sabe-se lá agora se não mais ainda qualquer coisinha.

Transforma tudo isto MM num mortal comum?

Deus credo que não, sua graça está mais que entalhada e gravada no muro dos imortais, mais não fosse porque só não é o melhor de sempre porque não há melhores de sempre, e houveram Giacomo e Valentino, pelo menos estes dois.

Mas lá que, tal como Rory, ele há curvas que seguindo em frente acabam no mar, lá isso é verdade.

E Marc, repetindo Dixon, não morrerá por ser imortal, neste caso finar-se-á apenas a possibilidade de ser deus em versão de regressos supremos.

Confuso?

Não.

Leiam o livro e depois falamos.

Já Miguel, ou Falcão, ou Oliviera, assim mesmo dito, num inglês aportuguesado que me encanta, já ele andou por Jerez faz agora duas semanas, na corrida segunda, a experimentar o fato, a tirar-lhe as medidas, internacionalizando de vez a sua heroicidade já aceite pelos portugueses cuja paixão pelo desporto conseguiu sair do trancafiado mundo do pontapé na chincha.

E se MO88 não debutou desde logo no baile andaluz, não terá sido por inépcia própria, antes por um incidente hoje por hoje já digerido e perdoado a um sul-africano que se atirou à primeira curva que nem Garfield faria a naco de bofe, levando em frente quem na frente existisse e quis o destino e o capeta que fosse o nosso menino.

No próximo domingo, passados que estão quinze dias sem esta adrenalina que já se nos entranhou, iniciar-se-á um trio de ternos seguidos, quer-se dizer, serão três semanas seguidinhas a abençoar as sextas, sábados e domingos, com os olhos postos nos cronómetros, nas curvas e no quadro da lateral esquerda do ecrã da TV, mais não preciso de dizer.

Brno e Spielberg, este em dose dupla e por acaso a casa mãe da fábrica mãe, assim tudo mais em família e nós com eles, aconchegados numa aposta que quase tornamos numa jura, Miguelito, o Falcão Oitenta e Oito, ao Olimpo haverá de chegar.

E se acaso vos acossar a vontade de me considerar exagerado em heroificar Oliveira, dir-vos-ia apenas que não me lembro de ver alguém chegar tão sozinho a um mundo quase exclusivo de espanhóis, italianos, espanhóis, japoneses e espanhóis, e apresentar-se olhos nos olhos, reclamando, em certeza sensata, lugar à mesa dos eleitos.

Escrevam, o 88 que dobrou o 44 inicial chegou já onde nunca antes nenhum outro ousou sequer espreitar, o mundo de punho a fundo que assusta a genialidade dos pilotos mais rápidos do mundo.

Talvez um dia, o comum pasmado que hoje franze o cenho à sigla MO88, seja o primeiro a exigir informação detalhada e atempada por parte de uma comunicação social que tarda em largar o colinho protector da mãe bola.

Portimão chegou.

Primeiro foi o circo mais mediático do mundo dos motores, a F1, essa mesmo, a reservar quarto com vista para o mar, trazendo ao Algarve a honra de receber de volta a nata da nata na velocidade em quatro rodas.

Honra a quem um dia apostou num projecto que parece ter reunido um lote de gente de qualidade insuspeita.

O traçado, que encanta os pilotos, a envolvência, a amplitude do espaço, tudo por ali é maravilhosamente lusitano, fazendo jus à qualidade de um Povo que não deixa de surpreender o mundo quando exibe seus dons e seus dotes, liberto de intrigas e pequenezes que por vezes lhe atrofiam esta dinâmica que é, afinal, do mais puro quilate.

Depois, quando a chegada dos bólides era ainda assunto de regozijo, eis que aporta a boa nova de que o Mundial de MotoGP terá seu epílogo por ali também, assim num repente não só Miguel correrá em casa, como todo o mundo terá os olhos postos num pedaço de terra onde desde sempre a aposta foi trabalho de altíssima qualidade, como o provam as constantes visitas dos monstros mundiais e universais do reino industrial dos construtores de equipas, motores e pneumáticos.

À semelhança de Dixon, o Rory que abre esta crónica, uma improvável conjugação de acontecimentos eleva à condição de heroicidade algo que em sua génese estaria destinado a uma pacatez digna do mais incógnito fenómeno. Se ao herói de Frank Ronan foi um penhasco a catapultar para uma celebridade improvável, já ao Sítio do Escampadinho, ali à zona da Mexilhoeira Grande, terá sido talvez o nefasto SARS-CoV-2, vulgo Corona, a franquear a janela de oportunidade que, passe a ironia da questão, trará vida inigualável às gentes algarvias, lusas também, quando receberem em sua casa o cortejo de heróis da real velocidade que, tudo indica, animará o Outono aqui do burgo, lá para Outubro e Novembro, assim o permitam as circunstâncias.

E que Marc Marquez, Oliveira, Rory Dixon e as gentes do Sítio de Escampadinho possam então merecer-vos a suprema honra da devoção que entregam aos heróis.

Que não morrem, ao invés do enganador título da obra de Frank.

Ps: não me lembro de ter escrito um post-scriptum em crónicas anteriores, mas se falei em heróis, acaso aceitam que vos sugira que sigam AFC amanhã e depois por Berlim?

Quem?

Félix da Costa, esse mesmo!