Crónica João Pais #37

João Pais, cronista

E depois de Estíria

Já percorri o traçado do circuito de Red Bull Ring cerca de quinhentas vezes, e se digo quinhentas é porque é um número redondo e vestido com um traje de exagero que gostamos de usar naqueles momentos em que fizemos uma coisa tantas vezes que se lhe perdeu a conta.

Em boa verdade, terei acompanhado aquela última volta não quinhentas mas apenas umas mil vezes, se somar todas as que imaginei ao adormecer, ao trocar mensagens, ao sorrir, ao abrir jornais, ao cumprimentar um vizinho com t-shirt azul marinho, ao tropeçar numa laranja ou quando na rua me cruzei com dois oitos de mão dada.

Para ser sincero, vi-a embalado por emoção em português, inglês, italiano, espanhol, turco, brasileiro, russo, sueco, latim, grego, persa, catalão e basco, busco ainda resquícios na TV do Burkina Fasso que eu não sou de desistir fácil, dir-vos-ei inclusive que terei escutado o grito espantado da explosão de Oliveira na curva nove em ondas sonoras chegadas de Marte, porque se há vida em Marte então aquela gente não pode ter deixado por mãos alheias a manhã do domingo de 23 de Agosto da graça de 2020, por mais que o fuso horário seja tanto que tenham de ter visto a coisa noite dentro.

Poderia fazer uma volta a pé e de olhos vendados, poderia fazê-la da frente para trás, lado a lado ou na diagonal, fá-la-ia só ou acompanhado, saco já da carteira dez nomes, cem nomes, mil nomes de gente que como eu ficou a conhecer melhor o traçado austríaco do que o pessoal da UBER Eats conhece o caminho para nossas casas em tempo de pandemia.
Perdoe-se a publicidade e ah pois é. Passada então esta emoção mor, esta senhora dona emoção, abordemos alguns acontecimentos que também por ali se puderam observar.

Oliveira, esse Miguel Ângelo Falcão, esse nosso predador, liderou uma corrida de MotoGP
por escassa centena de metros.
E ganhou-a.
Rácio de liderança na corrida e vitória final difícil de igualar, venham de lá agora voltas e mais voltas na frente, mais pódios com três degraus para subir, não devemos nada a ninguém no que diz respeito ao apoio ao nosso menino, Rossi excluído da equação, pois Valentino é de Marte, onde também viram a corrida, isso eu sei.
Miller.
Falemos de Miller, esse piloto que um dia saltou da Moto 3 directo para esta arena de gente graúda, mas que não terá perdido sua pureza de menino, revi também umas quantas dezenas de vezes a press conference e a sua expressão ao cantar ‘ Oliveeeeira’, baixinho, com verdade, conhecendo o refrão cantado ao nosso88, e isso, meus senhores, isso é fairplay no seu estado mais puro e agora Jack passará a pertencer ao quadro dos meus protegidos, para ele encomendarei também feitos a Rafael, o tal.

De Pol o que dizer?
Todos erramos, uns mais que outros.
Olhamos a Yamaha e achamos que abriram a porta à bruxa e ela entrou sem cerimónia, Tino luta por manter-se no salão de festas, Viñales parece uma vítima do Halloween II, III e IV, Morbidelli anda num ‘nem que sim nem que não’ e Fabio, Fabio o Simba filho de Mufasa que partiu o braço e anda longe, pois Quartararo anda desasado, deserdado, logo agora que tão perto ronda o pote.
De ouro.
Mir, injustiçado na lei das corridas que são assim mesmo, Dovi atarantado com tanto moço novo no bairro, Binder que depois do fogacho continua sem saber a morada de Garcia, Naka como Mir, espoliado por insensível destino, Zarco a mandar CV’s para o patrão e de tanta ânsia sai por vezes bojarda mor, Iker subindo em bicos dos pés sem fazer barulho, Danilo descendo em bicos dos pés sem fazer barulho.

E um fantasma, não esqueçamos um fantasma, Marc pesando nos ombros frágeis de um Alex que não merece tão pouca Honda para os outros que não são MM, Alex que parece ter calhado na casa que diz ‘ Sorte’ e ter tirado a carta que manda seguir directo para uma prisão sem sequer passar pela casa da Partida e recolher dois contos, que é como quem diz dez euros, e ele nem isso nem nada, fechado acorrentado e até já despachado dali.

Vendo bem, isto não se faz.
Vem aí Misano em dose dupla, o mundo estará de olhos postos em todo o mundo, cada qual terá suas respostas à demanda de seus seguidores, eles gritam e esbracejam, andiamo, adelante, allons-y, 先に進みましょう, um pouco de tudo escutaremos.

E nós?
Pois revisitando a Estíria sonharemos e estaremos por lá, gritaremos todos os gritos do mundo, gritaremos VOA Miguel. Talvez que aquela última volta, aquela que somada entre as minhas e as vossas terá sido corrida e escutada infinitas vezes mais uma, como teimávamos em crianças que nunca perdiam uma pendenga, talvez que a virtude mor dessa volta tenha sido o despertar de uma mole gigantesca de apoiantes que quase acreditavam na pirueta impossível mas não estavam presentes na hora em que o trapézio ia e vinha, ia e vinha.

Miguel, esse sabíamos nós que já sabia, já sabia desde a tenra idade em que olhando uma moto nela percebeu a noiva que o levaria ao altar dos consagrados, dos raríssimos eleitos.
Já nós, este cada vez maior mundo de fans e seguidores, não podemos agora negar a certeza de nossa missão, de levar mais longe e a mais gente a chegada do menino campeão, aquele menino que sonhava bater Rossi e que pedia umas palavras a Alex Barros em mítica jornada pelo Estoril.
Somos de Braga a Portimão, de Chaves a Lagos, de Guimarães a Lisboa, somos de Évora, Beja e Coimbra, somos do Porto e de Viseu, somos de Aveiro, da Amadora, de Gaia, de Paris, Londres e Genebra, do Rio e de São Paulo, de Maputo, Newark e de Luanda.
Somos de todas estas e de outras cidades, às que não mencionei dedico uma das voltas que revivi acordado na vitória de Oliveira e assim me redimo.
Por falar nisso, Portimão e Novembro são já ali.
Já tenho a minha t-shirt azul MO.
Imagino as bancadas do AIA numa cor de mar, numa cor de vida e de vitória feita no azul
oliveirista.
Uma mancha de gente, uma mancha de todos nós.
Estou certo de que já terão a vossa pronta e engomada.
Que bom é ser dos nossos!