Crónica João Pais #40

João Pais, cronista

O segredo da iguaria

Ele há coisas que são difíceis de repetir.
De decifrar.
Coisas para as quais o mundo olha e aquiesce.
E o mundo é parco em semelhantes concessões.
Aquiesce pouco, diria eu.
Mais ainda em se tratando de quase divindades, então aí aperta a malha.
Deste mundo e suas regras.
Miguel desde há muito que vem talhando e esculpindo sua escultura de predador.
Como em tudo nestas coisas de gente rara, vai-se metamorfoseando o bicho saído do casulo dos eleitos à nascença, de quem brincava à plasticina transformando-se a si mesmo nesse contorcionismo de aptidões.
Tanta aptidão é um dom.
Nem a todos dão esse dom.
E por isso ganham o direito a outro dom, um dom de D grande.
Dom Miguel.
De Almada e de todo o Portugal.
Vai talhando seu trajecto e chegando ao nível seguinte.
Tem uma coisa boa, verdade seja dita, disso nos avisou… Next Level, Quarenta e Quatro Curvas, lembram-se?
Lembram-se sim, com certeza.
44 antes do 88.
Miguel está a transformar-se num misto de piloto TOP no que respeita à afinação da moto, à sensibilidade de entendê-la como um todo que soma as partes e à estratégia de corrida…
Juntando-lhe agora a vertente que descodifica a partícula quase atómica que resulta num imaculado Time Attack nas qualificações…!
É como se que estivesse a chegar à parte final de uma receita… Valiosa.
Num jogo de suspensões, travões, quadros, chassis e uma infindável equação de premissas da engenharia contra os ponteiros de um relógio, a variável pneumática veio para baralhar e voltar a dar.
Uma estrela Michelin para quem descodifica Michelin, trocadilho inevitável.
Miguel, dono e senhor de apara-lápis de grossos carvões, vai passando a caneta Rotring seus desenhos de fino recorte.
A iguaria, meus senhores, vai chegando ao ponto.
Al dente.
Al garra.
Falcão.
As palavras enrolam-se, umas nas outras, conjugam-se e traduzem aquilo que os olhos vêem.

Misano, take dois, como gritaria o assistente de realização.
Sexta-feira correndo a preceito, como se já fossemos achando natural vê-lo por entre as cercanias da P5 e arredores, duas boas sessões, ali bem dentro da centrifugação dos ponteiros do tempo, e nisto chega o sábado, que é quando a porca torce o rabo e escolhe quem vai à grelha da gente graúda, Falcão a tecer bordados de precisão e inclemência, daqueles que se destapam nas últimas voltas e fica feito o negócio, como sempre víramos aos outros, este é um novo Miguel Ângelo, um operário de completas virtudes, ele ali vai, cai uma vez, levanta-se que para a frente é que é o caminho, vai marcando a laranja ali no finalzinho, bom sinal, bom sinal, está quase…
Não esteve.
Mas não esteve mesmo nada, queda feia, deu para ver e depois nada vimos, durante uns minutos sentimos todo o fim-de-semana transformado numa segunda-feira fria e chuvosa carregada do mais penalizante cinzento, e eu a caminho de casa, trancafiado no carro e olhando desesperado um LiveTiming que parara algures o Miguel na pista, e aquele gráfico que não evoluía.
Nem ele, nem eu.

Nas notícias, daquelas menos cuidadas, oiço que Miguel tendo caído vira falhada sua pretensão de se qualificar para a corrida, esculhambou-se-me a vontade, até de escrever, imagine-se, até disto de estar por aqui convosco.
Estava errada.
A notícia apressada.
Com o ombro sabe-se lá como, com a moral minada por um bojardão que o sacudiu como
se tratasse de falcão desasado, chegou-se à Q2 e ainda assim fez o seu melhor tempo nas
qualificações, ah homem dum raio que é assim mesmo, um gajo torce mas não parte, isto
dito daqui soa bonito e fácil, em estando lá é que devem ser elas, sejam lá elas quem forem.
P15.
Dia de corrida.
Miguel havia respondido o óbvio ao busílis da questão acerca de uma classificação menos
conseguida, uma quase tragédia para alguns e afinal a uns poucos metros da P12 da semana anterior, pois que não via outro remédio senão ir ao ataque, tem de ser e é se queres, como tantas vezes ouvimos em nossas vidas.
E foi.
Foi o que fez.
Miguel cai pouco, passe a contradição com este sábado de maus fígados para todos nós.
É precavido, astuto e predador, não perdoa, estuda a coisa, analisa, tem um moinho e leva-lhe a água, e outros que tão sôfregos vão ao pote, e ele nada, quedo, sossegado.
Curva a curva, um lugar de cada vez, vai a ladeira a meio e o alforge cheio de borracha nos pneus e ele indo, por ali fora acelerando, a menina em suas mãos ágil e solta para lhe dançar a valsa de quem busca o palco dos escolhidos.
De P15 a P5 vão dez lugares de distância.
Da queda feia numa manhã de ingrata recompensa a quem completa sua receita de
completo Chef, ao quase pódio numa corrida de campeões, distou nada.
Um nada onde cabemos todos.

Podemos admitir que nos entristeceu ver Bagnaia esbarrar em novo ‘quase, quase’, não
discutimos como foi imerecida a impossível equação que levou uma película descartável do
capacete de Fabio a acabar com a corrida de um Miller que aprendemos a admirar.
Olhamos a Brad, reconhecemos-lhe rapidez, talento e pouca análise do fenómeno.
Miguel cai pouco, lembram-se?
Viñales finalmente, Mir de novo, Pol por ali, fazendo pódios com uma KTM que desabraçou.
E Iker, essa surpresa de bom que vem absorvendo de Miguel tudo o que Miguel lhe desfila
pela frente.
Iker, mata-borrão que absorve com astúcia.
Iker que merecia ter ficado até ao fim.

E nós?
Continuemos, muitos e cada vez mais.
Em silêncio, esperançosos, palpitando nada quando a sabedoria é pouca.
Mas num silêncio de braços ao alto e coração cheio.
Porque isso, meus senhores, isso é o que alimenta Miguel, o Predador do Nosso Encanto.
Acabada a prosa, tomo conhecimento, Martim Marco, o Expresso de Assafarge e Antanhol é
campeão nacional de Moto 5, cinco corridas, cinco vitórias, hoje com Pedrinho Matos
chegando-se perto, chegando-se muito perto, um Pedrinho crescendo a Pedrão…
Em Talavera, um tal Gonçalo Capote fazia a estreia numa tarde sem frio nem calor, antes
pelo contrário, com lonjura das luzes da ribalta e das bancadas cheias, aprendendo na
Oliveira Cup os passos que levam às curvas que trazem vitórias.
Assim é a receita dos campeões … começando com um ingrediente chamado dom,
prosseguindo com outro chamado perseverança.
E nós?
Nós com eles.
Com eles todos.