Crónica João Pais #48

João Pais, cronista

Retalhos da Vida de um Piloto

Ou de um piloto dentista.
Mas antes, que se comece pelo começo.
Redunda e faz sentido.

Muy bien chico Joan Mir.
Imprevisto talvez, merecido com toda a certeza, o menino que em Moto3 virava umas atrás das outras, que em Moto2 andava num ‘por aqui e por ali’ sem assentar arraial, chegou à classe rainha e no seu segundo ano por estas bandas foi o grande premiado da lotaria resultante da lesão interminável de Marc Marquez, o imperador em modo pausa.
Sim senhor, foi d’ homem menino Mir.
Posto isto, tratemos agora de outros retalhos.

Novembro de 2020, dia 15, Miguel Ângelo deixa meio entristados seus adeptos por ser apenas sexto classificado numa corrida onde está a nata da nata, a crème de la crème, la crema de la crema e o mais que se lembrem.

Mais ou menos um ano depois de ter terminado a sua estreia na classe rainha, onde em parceria com um cabeludo francês com ares de Doc Emmett Brown conseguiu em tempo muito razoável um compêndio de dados e informação que permitiriam aos engenheiros da equipa francesa ambicionar degraus cada vez mais altos, ao ponto de muitas das vezes andar resvés Campo d’Ourique com Pol, o menino da casa, que não poucas vezes mandava seus mosqueteiros em busca das equações aerodinâmicas de Miguel o Pensador, ao fim desse ano inicial eis que Falcão transforma sua legião de adeptos numa massa exigente e conhecedora que já franze o sobrolho a um… sexto lugar.

Belisquem-me ou chamem o médico, dir-lhes-ia eu há uns meses, se acaso imaginasse que eu próprio iria meio macambúzio preparar um café ao aperceber-me que a poucas voltas do fim de uma corrida desse por mim num ‘efectivamente não há nada como realmente’, isto está feito, nem Binder que ia à frente atenderia o telefone, nem Mir que vinha atrás iria bater à porta, por hoje está o expediente encerrado, vamos a contas.
Então vamos lá …

Pela quarta vez este ano o #88 mais redondo e perfeito de toda a tabuada do MotoGP terminou uma corrida em P6, ao que soma dois P5, um P8 e um P11, pulverizando as expectativas trazidas do ano anterior, terminando por nove vezes bem nas cercanias da disputa de pódios e holofotes, trazendo uma cereja digna do Entroncamento para o topo do bolo, quando em Estíria, estirou ao limite sua cola nos da frente e lhes ofereceu na última curva a mais bela surpresa de um Falcão em voo rasante.

Das treze corridas disputadas até agora apenas em quatro veio de pneus sem ar nem garbo, sendo que em duas delas o desperdício foi provocado em duas situações que se não dessem para chorar dariam para rir, uma delas na primeira curva de uma corrida que muito prometia e em que Binder foi ao pote com sede de três dias.

Com um GP por disputar, no fantástico AIA que infelizmente terá na bancada apenas as cadeiras, eis que o Oliveira do nosso contentamento poderá aspirar ainda a P9 na classificação final, com um pouco de sorte e ousadia quem sabe P8, daí para cima apenas no reino da matemática, mas para um ex-novato que para o ano se sentará no cadeirão da mordomia mor, pois a mim parece-me que são números de não envergonhar ninguém, antes pelo contrário, deixam água na boca e dão vontade de corrermos a avisar algum amigo mais chegado do que ele anda a perder, isto caso não tenha ainda decidido marcar certos fins-de-semana de acordo com os horários de Miguelito e sus muchachos austríacos.

Alguns parâmetros eram apontados a Miguel como sendo seus assuntos de menor fulgor, chamemos-lhes assim, entre os quais qualificações menos bem conseguidas, por um lado, e pouca agressividade em pista, por outro.
Pois seja, desbastemos tais assuntos, um de cada vez por favor.

Qualificações!
Ora se bem sabemos são apenas dez os pilotos que nas três primeiras sessões de treinos livres qualificam directo para a Q2, onde se decidem os melhores lugares no banquete da largada, vulgo a luta pela pole position.
Ao desfolharmos a listagem da potencial clientela a semelhante desiderato, será lícito nela incluir desde logo quem se apresente a concurso nas quatro principais equipas, Honda, Suzuki, Ducati e Yamaha, o que, numa básica operação aritmética nos dá oito lugares com dono quase pré-anunciado. Poderão alguns argumentar que a Honda apresenta apenas um candidato, em virtude da sua imprevisível usabilidade em mãos que não as de Marc, o que Alex veio a desmentir tardia ia a competição, assim provando que há mais mundo naquela fábrica, mas acedamos e retiremos um à equação, em virtude da ausência do campeão do mundo da primeira desde a primeira corrida.
Sete que sejam, somemos-lhes dois pilotos de uma Petronas fortíssima desde o inicio, dois da LCR satélite da Honda, dois KTM de fábrica e um Aleix que desde sempre conseguiu sacar voltas canhão à Aprilia, num jeito de fogacho de adolescente mas que assim marcava lugar várias vezes na fila, ora bem deixa cá ver, sete e sete são catorze.
Oh diacho, isto afinal não está fácil.

E o que fez Miguel?
Após uma série de contratempos, aos quais não será alheia a falta de dados na equipa e de outro piloto que pudesse dividir a hercúlea tarefa de afinar um monstro de duzentos e setenta cavalos e de sensibilidade milimétrica a pequenas mudanças em mil detalhes, eis que Miguel começou a afinar a sua própria estratégia e a aparecer na Q2, ora entrando directo, ora brilhando na Q1, isto ao ponto de já andarmos de ‘facis’ aperreado quando ele, por alguma das muitas razões possíveis, não qualificava nas quatro primeiras filas.

Próxima paragem, agressividade em dose curta, é isso?
Ora bem, assim de repente, recordo-me de dois arranques canhão quando passou a ter à disposição um tal de ‘holeshot’ que pelos vistos é muleta de bom desempenho.
Se por exemplo atentarmos ainda na Q1 de sábado, ia decorrida mais de meia sessão e Miguel aparecia com o tempo mais rápido, não sendo despiciendo recordar que qualquer detalhe por ali faz a diferença entre ser o número um da sessão ou, por vezes, o décimo segundo e último naquela batalha sem quartel.
Já em corrida, a relação entre uma agressividade a preço de saldo e uma intimidade com o asfalto e a gravilha na perspectiva de utilizador em posição deitado, essa relação é notória e reflecte-se depois em custos astronómicos e na… tabela classificativa, obrigando-nos a recorrer à sabedoria popular e recordar-vos a eterna questão do sol na eira e da chuva no nabal.

Sabendo que para tudo a religião, a natureza ou um qualquer néscio encontrarão explicação, a verdade nua e crua é que no domingo Miguel bateu em pista pilotos como o actual campeão Mir, Dovizioso, Viñales, Rossi, Crutchlow, Petrucci, Nakagami, o putativo candidato Quartararo e ainda Zarco, tudo gente com bons desenhos em sua sebenta, alguns com obras inigualáveis como Il Dottore.
Dir-me-ão que foi por isto ou aquilo.
Aquiesço e retruco.
E por aqueloutro.
Enorme Falcão, encantar-nos-á agora em Portimão?