Crónica João Pais #49

João Pais, cronista

Da montanha AIA para o mundo

Portimão, mas que mundo mais bonito.
E talvez os três dias mais lindos também.
Não caberá por aqui tudo o que te quereríamos dizer, todas as palavras, frases e parágrafos desejariam aqui estar, mas a hora é a de te olhar com um abraço gigante e dizer-te, mas que grande és Miguel Ângelo, que grande e de todos nós és afinal.
E obrigado.
Um enorme e infinito obrigado.
Passeámos sonhadores contigo, enfeitiçados pelo mais predador Falcão, fomos desembestados, asfalto acima, asfalto abaixo, curvámos direitas e deitámos esquerdas, experimentámos aquela estranha dádiva de sentir o corpo voar de dentro para fora.
Que belo é mesmo voar.
É isso Miguel Oliveira, fomos todos pilotos de MotoGP durante três dias mágicos.

Recordemos, viajemos na máquina do tempo, são 14h00 de domingo dia 22, as luzes vermelhas do semáforo apagam-se e o destino cumpre-se, aquele menino de olhar vivo foi em busca daquilo em que num dia lá longe acreditou, foi atrás do que lhe ensinou ser possível um pai chamado Paulo Oliveira, Miguelito foi tratar de ser o mais rápido de todos os mais rápidos do mundo.
E nós, quedos, embasbacados, felizes, num uníssono universal, não pudemos viajar até aí mas foi aí que chegámos e ficámos, vindos de todos os cantos e recantos do mundo, acelerando contigo esta certeza de te saber voador imperial no Reino dos Algarves, convictos sem o menor vacilo ou desesperança, como foi possível deixares-nos tão maravilhosamente hipnotizados naquele sobe e desce, naquele vaivém de pássaro, quão infinitamente belas foram aquelas vinte e cinco voltas em que te acreditámos de olhos fechados?
São 14h42, a bandeira de xadrez pinta-se do teu azul laranja, mimetiza-se num tom de verde e encarnado, imagino-me incapaz de criar os parágrafos que façam jus à tua corrida que chamamos de nossa, nesse momento recebo uma chamada, ligam-me de Singapura, já me haviam ligado dessa lonjura para São Paulo, quando um dia no passado eu chorava incrédulo, sozinho e sorridente o que nos oferecias desde Estíria, em corrida debruada a ouro, e logo ali me haviam feito jura jurada de que se repetiria o chamamento, soubesse eu esperar e acreditar, este é o mundo que unes e que é teu, gente portuguesa que correrá contigo nas eternidades helicoidais e elípticas que ajudarão a desenhar aquilo que sonhamos contigo, vai com tudo, vai o mais rápido, que te acompanharemos sem medos, que te gritaremos a cada dia que nunca correrás só.

Portimão, sexta-feira pela manhã, tempo como gostamos, um Verão que vem de férias visitar-nos, um sol que parece inspirar vontades, começas o trabalho de formiguinha e terminas uma FP1 sem mácula e uma FP2 onde por certo terás atempadamente eliminado as incógnitas que não pertenceriam à equação perfeita.

Sábado, de novo solarengo, desembainhas uma estocada cirúrgica, rapidamente garantes lugar na peleja real, onde todos sonhamos que possas ombrear com os da frente, e onde nos fizeste esperar por uma última volta traçada a esquadro e compasso com a mais refinada tinta da china para nos fazer gaguejar um grito, um berro a sós ou em família, saracoteámos, dançámos, gritámos Pole Position, como se o nosso mais novo, o cão, o vizinho ou quem passasse pudesse saber do que falávamos, dessa lindíssima expressão de velocidade feita de pundonor.
De garra imensa.

Domingo, de novo os ponteiros do relógio a marcarem as quatorze.
Arrancaste dali num fósforo e fizeste como a bola da canção, recordas-te?… tê-la-ão cantado para ti?… o Manel tinha uma bola, foi-se embora fugiu, nunca mais ninguém a viu, assim fizeste tu, tudo tão rápido que nem Morbidelli ou Miller puderam dar-te abraço de ‘até mais logo’, e enquanto fazias o ‘costa a costa’, enquanto ias da sopa à sobremesa, num arremedo de fio a pavio, tratávamos nós de nos fingir calmos, trocávamos mensagens a dizer que sim e que mais que também, só eu levantei-me três vezes para ir à cozinha fazer café, que é onde preparo as tuas vitórias mentalmente, regressando ao local da acção pé ante pé, sem fazer barulho e desde logo espreitando a coluna da classificação para lá te reencontrar pregado no topo, agora imagino o que não terá sido nas casas do mundo inteiro, onde trouxeste um tsunami de emoção voadora, um mar navegado em destemidos ângulos de punho a fundo, creio que até Gama, o Vasco, sentiria orgulho em bravata assim.

As últimas voltas então foram de criança grande em frente ao embrulho, num posso, não posso? … que nisto das corridas destes monstrengos carenados nunca se sabe quando saem a direito depois do sinal de curva perigosa, é coisa a que nunca me habituarei, esta falta de pré-aviso de desfeita bruta a caminho, quantas vezes a pessoa até está ali para sorrisos e vai a ver depois e o nome do seu eleito apanha o elevador que desce, e um homem, ou uma mulher, até se agoniam num desligar imediato da TV?

Vejo agora, num dos arrazoados de mensagens e mais mensagens que aportam via uótezape e messenger, vejo a entrevista pós corrida em que referes ao jornalista a interminável meia dúzia final de voltas, em que uma coisa do tamanho de uma pequena gota de suor te impedia de ver com olhos de ver todo o traçado de certas curvas, ainda bem que só agora mo dizes, se me tem chegado relato de semelhante coisa à hora e minuto em que aconteceu, estou ciente de que nem com o preparo de um barril de café eu la ia para preceito e mezinha de vitória.

E agora, agora chegou ao fim, durante três meses, a expectativa de ter semanas com três dias de turbulência emocional, com rotinas de chegada à bancada de café na mão, o sofá irá estranhar-nos, os grupos onde palpitamos acharão que fomos apanhados pelo corona de tal forma que até a fala teremos perdido.
Para o ano virá então a moto da rainha mãe, dona KTM vestida em seu laranja de esplendor.
Miguel, de Almada, de Portugal, de Estíria, de Portimão e de todos nós, o que faremos sem ti até lá?
Sentiremos também falta do teu saber segredado aos ouvidos do druida Guy, tanto que gostaríamos de ver repetida a felicidade infantil e genuína de um senhor chamado Poncharal.
Quando em Março as figas eram para te ver ali nos doze primeiros e chegas a Novembro terminando tão perto dos melhores cinco, então desatamos a imaginar como não será quando nos reencontrarmos…
De uma coisa podes estar certo, Miguel Ângelo, os mesmos seguidores deste ano e mais uns milhares por eles trazidos estarão aqui para te admirar.
Sepúlveda escreveu um dia acerca de um gato que ensinou uma gaivota a voar.
Nós escreveremos sobre um Falcão que ensinou um povo a sonhar.

P.S.: Após um ano de crónicas, só posso agradecer o enorme prazer que a MotoJornal me proporcionou ao aproximar-me dos seus leitores.
A todos envio um enorme abraço de agradecimento e de despedida.
Até sempre.