A estatísticas da sinistralidade rodoviária fizeram recentemente com que os motociclistas e as motos fossem alvo de notícias muito negativas na imprensa generalista nacional.
Vamos aos factos: as estatísticas divulgadas pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) dizem respeito ao período Janeiro-Outubro de 2017, e demonstram um aumento no número de acidentes e de mortos, contrariando a tendência de descida dos últimos anos. O maior aumento no número de mortos registou-se nos utilizadores de motos – mais 41 (de um total de 48), no período homólogo Janeiro-Outubro.
Os factos acabam aqui. Tudo o que veio a lume a seguir, nomeadamente as declarações de alguns ‘especialistas’, incluíndo o Ministro da Administração Interna, não passa de mera especulação e, em muitos casos, a mais pura balela.
Os número da ANSR não explicam o como, o porquê, nem quem (à excepção da faixa etária). Dizer que a culpa do aumento da mortalidade rodoviária é da ‘Lei das 125 cc’, da faixa do BUS ou da falta de inspecções é pura especulação. As estatísticas da ANSR não fazem sequer distinção no segmento de motos, apenas divide os veículos de duas rodas em três categorias: velocípedes (bicicletas), ciclomotores (< 50 cc) e motociclos (> 50 cc).
Por isso, a quem esgrimiu aqueles factores como explicação para o aumento do número de vítimas mortais, deixo as perguntas: quantos motociclistas morreram na faixa do BUS? Quantos dos mortos conduziam 125 cc? Quantos desses não tinham carta de moto? Quantas dessas mortes aconteceram por anomalias técnicas nas motos? Parece-me que a resposta é comum a todas: ninguém sabe, ou pelo menos não estão patentes nos números da ANSR, que foram os que deram origem a esta procissão de papagaios de janela.
Mais: se o aumento do número de mortos se deve ao facto de não haver inspecções e também à ‘Lei das 125 cc’, segundo esses ‘peritos’, em que é que as inspecções teriam impedido o aumento do número de mortos, se as inspecções estão previstas apenas para motos com mais de 250 cc?
A explicação mais verosímil é a de que o número de mortos este ano acompanhou a maior utilização das motos em Portugal, por dois motivos: crescimento do mercado (mais 23% em 2017 em relação ao ano interior) e ao infindável Verão que praticamente só terminou em Novembro, levando mais gente a usar a moto durante mais tempo e acumulando mais quilómetros do que em anos anteriores.
Ainda assim, até esta é uma explicação especulativa, porque não consegue correlacionar comprovadamente causa e efeito. As estatísticas de Novembro, entretanto também já publicadas, mostrando um abrandamento da mortalidade, ajudam a esta teoria. Mas faltam dados e estudos que ajudem a ler as estatísticas dos acidentes rodoviários e a compreendê-los, de forma a implementar as soluções certas para os evitar.
Mas em virtude do que veio a público, o Ministro da Administração Interna parece ter já a solução: «repensar aquilo que foi uma decisão que nos suscitou as maiores dúvidas, que foi a dispensa de qualquer formação para quem, tendo uma carta de ligeiros, possa comprar uma mota até 125cc e imediatamente sair para a estrada» (se suscitou dúvidas, porque não as esclareceram?…), explicou numa entrevista que passou este sábado na Antena 1, conduzida pela jornalista Maria Flor Pedroso, e amplamente citada anteriormente na imprensa nacional; o Ministro acrescentou ainda que «A segunda zona de risco, em que houve um crescimento preocupante, tem que ver com os motociclos e temos de repensar duas coisas: a dispensa de inspecção que hoje os motociclos têm, os nossos veículos automóveis têm inspecção e as motas não têm e terão de ter mecanismos de inspecção». Para quê? Pergunto eu. Concordo, por princípio, que sendo veículos motorizados as motos passem, como os outros veículos, pela inspecção. Mas indo além do princípio, repito uma pergunta anterior: quantos acidentes de moto (e quantos mortos) se ficaram a dever a anomalias nas motos? Justifica-se o custo inerente? Antes de haver respostas fundamentadas, deixem lá as 125 e as inspecções sossegadas.
O MAI fez ainda alusões à possível redução do limite de velocidade em meio urbano para 30 km/h, acreditando que quem não cumpre os actuais limites vai cumprir uns ainda mais apertados. Certo…
Legislar antes de se analisar as causas de um ano atípico em termos de sinistralidade, não me parece ser a melhor linha de actuação. «Escrever leis é fácil, governar é que é difícil», disse Leo Tolstoi.
Os motociclistas têm, naturalmente, uma percepção e uma leitura diferente dos números, e sentem que há interesses por trás de tanta conversa, especialmente das escolas de condução e dos centros de inspecções, e que o objectivo de tanta pressão aproveitando o aumento da sinistralidade é, não aumentar a segurança, mas sim irem-lhes ao bolso, mais uma vez, ainda por cima sem benefício aparente.
A Lei 78/2009, a célebre ‘Lei das 125 cc’, que permite aos detentores da Licença B, a carta de automóvel, conduzir «motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e de potência máxima até 11 kW» entrou em vigor em Agosto de 2009. Deixo outra pergunta: porque é que só agora, oito anos depois, é que é a causadora do aumento da sinistralidade, não tendo acontecido nos anos logo após a sua implementação? Desculpem, afinal são duas perguntas: porque é que só agravou a sinistralidade em Portugal, e não nos outros países (que adoptaram a lei há muito mais tempo e onde se vendem muitas mais motos, tipo, 5 a 10 vezes mais)?
Querem falar de segurança rodoviária? Deixo uns tópicos, alguns que volta na volta vêm à baila – geralmente quando é do interesse partido-eleitoral -, antes de voltar a cair no esquecimento:
• Ensino da segurança rodoviária nas escolas, desde o primeiro ciclo;
• Melhorar o ensino da condução. Parques de manobras: lembram-se? Custaram 15 milhões nos longínquos anos ’90 e nunca serviram para nada – na minha opinião o ensino da condução deixa muito a desejar, as pessoas na realidade acabam por aprender por si próprias já com a carta no bolso;
• Mais – e mais eficaz – fiscalização na estrada (em vez do foco doentio na velocidade): por exemplo, a quantidade de automobilistas ao telefone (e até ao computador, como eu já vi várias vezes) é apenas um indicador do comportamento negligente e impune generalizado na estrada, que inclui o total desrespeito pelas mais elementares regras do Código da Estrada. E sim, sei que os motociclistas não são nenhuns santinhos neste capítulo, há ovelhas negras em todos os campos.
• Melhorar o estado das estradas e da sinalização, tantas vezes degradada, escondida ou simplesmente inexistente ou inadequada.
Por outro lado, tem faltado alguma união no sector motociclístico que consiga exercer algum contrapoder quando surgem estas situações. Para além de algumas acções, por vezes discretas, da Federação de Motociclismo de Portugal na luta pelos utilizadores das duas rodas motorizadas, as iniciativas que têm dado voz a quem anda de moto têm vindo essencialmente dos próprios motociclistas – aonde andas, GAM? – e que têm resultado (ímposto de luxo, rails, descontos nas portagens, a própria ‘Lei das 125’, etc…), mas falta mais.
O que tem faltado, na minha opinião, são uns intervenientes de peso nas reivindicações neste sector: as marcas e os seus representantes – de motos, acessórios, componentes, etc.
Se a carta B deixar de ser suficiente para conduzir uma 125 e passar a ser necessário ‘tirar’ uma carta específica, o que vai acontecer a esse segmento? O mesmo que aconteceu às cinquentinhas, praticamente desaparece. É todo um sector profissional, toda uma área de negócio que ao longo dos anos foi sobrevivendo com grande esforço, que vai sofrer directamente, e por isso é também parte interessada numa solução racional, e em contrariar o desvario de alguns.
Este sector tem vingado essencialmente graças à carolice e visão de pessoas que estão há muitos anos no meio, e do qual têm um profundo conhecimento. Por isso conseguiram construir empresas de sucesso, apesar dos vários abanões ao longo dos anos. Tenho a certeza que essas mesmas pessoas dariam um grande contributo para esta discussão e na busca de uma solução viável, racional e benéfica para todos. E unidos teriam uma voz mais forte. Uma vez que já estão institucionalmente unidos na ACAP, aproveitem a força dessa união.
No fundo, queremos todos o mesmo: continuar a desfrutar da condução em duas rodas, com as suas imbatíveis vantagens em termos de mobilidade, com o mínimo de acidentes e mortos possível, mas para isso é preciso agir racionalmente e tomar decisões bem fundamentadas, em vez de precipitadas e mal aconselhadas, ou pior, baseadas em ‘achismos’ ou interesses que não o bem público.