Viagens noutros tempos

Com a crise do “vírus chinês” ficámos enclausurados em casa (uns mais que outros) e todos tivemos tempo para ir ao baú das recordações. Aquilo que tento aqui é deixar um pequeno testemunho de como era ter moto e viajar de moto há 45 anos, que foi quando comecei a ir de moto à procura de outras realidades, de outras gentes e paisagens.

Texto e fotos Tó Manel

Quando a alma é grande, nada nos pára

A moto destas fotos é uma Ducati 750GT de 1974; são fotos de uma viagem em Marrocos em 1980 e Planalto da Anatólia na Turquia em 1986, consegui comprá-la nova no stand com zero km e por 250 contos (250 mil escudos +/- 1250 euros). Esta Ducati foi a minha terceira moto e a primeira que comprei nova, depois de uma Norton 500 (1 cilindro de 1956) e uma Triumph Tiger 500 (2 cilindros de 1970) mas era muito difícil ter moto nos anos 70 e 80 porque havia pouquíssimo dinheiro; um salário razoável no final da década de 70 era de 7 contos (7 mil escudos +/- 35 euros).

Por haver pouco dinheiro o Estado evitava importações e para isso impunha a contingentação às marcas; para além disso, não havia créditos bancários para aquisição de motos. Havia um ou outro stand de motos usadas, entre os quais o famoso “Stand Vidal” em Lisboa (foi lá que comprei a Triumph) que emitia umas letras e o pessoal ia pagando todos os meses; se houvesse uma falha num mês e não houvesse uma boa justificação, ele tinha uma carrinha com que ia rapidamente buscar as motos a casa dos clientes.

Equipamentos pessoais de jeito para andar de moto também não havia… tinha-se de improvisar um bocado. Resumindo: praticamente não havia nada… não havia dinheiro, não havia motos, não havia equipamentos… mas o que faltava em condições sobrava em vontade e espírito…E assim, quando a alma é grande nada nos pára. Viajar… Bom, viajar era uma aventura que começava muitos meses antes de sair-se de casa… Primeiro, não havia cartões de crédito e segundo, havia limite de dinheiro com que se podia sair do país (se bem me lembro eram 10 contos, (10 mil escudos +/- 50 euros) e tinha de ser declarado na saída da nossa fronteira; mas com 10 contos, mesmo há 45 anos, não se ia muito longe… A nossa condição geográfica (extremo da Europa) nunca ajudou nesse aspecto, porque temos sempre de percorrer grandes distâncias quando saímos daqui; temos logo dois países enormes para atravessar, Espanha e França.

Sempre invejei os motociclistas do centro da Europa por isso… Percorrem umas centenas de kms e atravessam uma data de países. Que inveja… Com a inexistência de “cartões de crédito” e o controlo cerrado sobre a compra de divisas estrangeiras , tinha-se de procurar na candonga e conseguir ir comprando previamente moedas fortes (dólares, marcos, libras e francos suiços ou franceses) porque o escudo não valia nada passada a fronteira. Levava-se o dinheiro que se conseguisse arranjar bem escondido e ia-se cambiando pela moeda de cada país por onde se andasse, sempre fazendo contas para não trocar mais do que o necessário pois cada “cambiadela” era dinheiro que se perdia… As fronteiras eram uma chatice… depois de um mês lá por fora o passaporte vinha todo carimbado e em algumas fronteiras as carimbadelas eram demoradas, “aborrecidas” e em fronteiras de países mais complicados, o passaporte tinha de levar algum “recheio” quando era entregue ao guarda fronteiriço… Por cá era também difícil encontrar mapas de estrada de outros países e iam-se comprando pelo caminho.

Depois era viajar em “classe low cost”, ou seja, dormir sempre em parques de campismo, muitas vezes mesmo em “campismo selvagem”, levar um fogãozinho pequeno que funcionava a álcool etílico (mais tarde substituído por um “camping-gaz”), optar pelo supermercado em vez do restaurante e estar sempre atento a algumas árvores de fruta que se “atravessassem no caminho”… Senão o dinheiro só chegava para atravessar a Espanha e no meu caso tinha sempre de durar para (pelo menos) um mês de férias e de viagem, tempo que algumas vezes se prolongava…

Lembro de num ano ter ido para a Turquia com esta Ducati e foram quase dois meses fora; como o conseguia fazer, considerando que era empregado dos Correios e tinha só um mês de férias?… Bom… Isso são outras histórias… E as motos… As motos, obviamente, tinham de ser tratadas com “muito amor e carinho”, antes, na preparação para a viagem e durante a viagem, porque se avariassem com gravidade a milhares de kms de casa podia ser muito complicado (escusado será dizer que as seguradoras só começaram a ter o serviço de “assistência em viagem” para motos no início deste século); mas o que valia era que naquele tempo, quando uma moto parava fazia-se logo o diagnóstico e a maior parte das avarias resolviam-se na berma da estrada; os motociclistas que viajavam nessas épocas eram (porque tinham mesmo de ser), “grandes desenrascas”; o facto é que, como diz o ditado, “a necessidade aguça o engenho”; havia sempre na bagagem velas para o motor, um condensador, um jogo de platinados, remendos de furos, um bom kit de ferramentas que se sabia poderem ser mais uteis e um “kit de arame”, que entretanto com a “era do plástico”, foi mais tarde substituído por um rolo de “fita americana” e um tubo de “cola rápida”… e na actualidade, praticamente tudo o que não se resolver com fita adesiva e cola, fica por resolver… Porque hoje quando uma moto avaria pouco ou nada há a fazer na estrada.

O que vale é que com a evolução tecnológica (materiais de fabrico e óleos) praticamente acabaram as avarias. Felizmente, nunca fiquei a meio de uma viagem… Sempre fui e voltei mas, todos os dias ao fim das jornadas de estrada, passava alguns momentos a verificar a moto para fazer o que fosse necessário de modo a no dia seguinte estar pronta a arrancar. Tem piada que foi um hábito que mantive até aos dias de hoje, apesar de toda a mudança do paradigma de viajar de moto. Enfim, era sim uma grande aventura viajar de moto há 40 anos mas motos e motociclistas eram sempre vistos como grandes aventureiros em todo o lado e de quanto mais longe vinham mais bem vistos eram e mais bem recebidos eram também em todo o lado. E como de Portugal pouco se sabia lá fora (relembro que estivemos praticamente fechados ao Mundo durante 40 anos até a 1974), havia sempre por parte das populações dos países alguma curiosidade sobre os portugueses.

Havia um nome que era muito conhecido em todos os países “Eusébio” e ajudava a “quebrar algum gelo” que pudesse existir e iniciar comunicação. Mas se Portugal era um país que tinha “perdido o comboio” da evolução social no período de grande desenvolvimento pós IIª Grande Guerra Mundial, não eramos os únicos que tínhamos ficado para trás, porque todo o Leste tinha estagnado e nos países muçulmanos as coisas eram bem piores. Havia locais no interior ostracizado de alguns países que podiam reservar algumas surpresas desagradáveis…

Nunca tive grandes problemas mas sobretudo em Marrocos, no Egipto e na Turquia tive situações que poderiam ter corrido muito mal; ah… uma vez também em França e contra todas as expectativas mas, o chauvinismo francês às vezes revela-se da pior forma… E naquela altura revelava-se demasiadas vezes no contacto com os estrangeiros; quis o destino que estivessem actualmente numa situação impensável para qualquer francês há 40 anos, quando agora abre a janela de casa e tem um minarete de uma mesquita em frente… Como sempre e ainda hoje, em viagem há que ter muita calma em todas as situações e circunstâncias e, sobretudo, nunca esquecermos a condição de forasteiros. Sempre me dei bem com este princípio.

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