Textos: Arcílio Silva • Fotos Arcílio Silva e Filipe Silva
Já sabia que escrever estas linhas ia ser desafiante. Não pela falta do que contar, mas pelo excesso do que vi e senti! Fazer uma incursão de moto por África resulta sempre num generoso cardápio de bons momentos para partilhar. Porém, vou cingir este texto à fase preparatória da minha participação numa expedição de dez mil quilómetros com a minha Honda Transalp 650 de 2001. Ou seja, mais do que falar da viagem, das emoções, locais e cronologias, pareceu-me também interessante partilhar a minha experiência com os “olhos” colocados na minha “decana” trail de média cilindrada, referindo-me igualmente aos preparativos e opções da palamenta que levei para os 12+3 dias de viagem entre Lisboa e Dakar – ida e volta.
Para melhor vos contextualizar, em conjunto com mais quatro companheiros, fizemos parte do projecto piloto “A Maior Aventura”, uma expedição singular, que contou com um roteiro totalmente idealizado e preparado pelo João Luís, um conhecido e experimentado viajante, que já percorreu muitas estradas pelo mundo fora de moto e a solo. Sobre a experiência pessoal e colectiva de viagem, deslumbramentos, emoções, vivências, percurso, peripécias e demais histórias desta “Maior Aventura”, o melhor mesmo é assistir aos dois vídeos que no final deste texto vão encontrar.
Dupla de coragem?
Reconheço que ir numa moto que não seja uma big trail, pode até retirar algum fascínio e encantamento habitual. Por outro lado, ir de Transalp acrescenta alguma curiosidade e empatia, sobretudo porque muitos de vós, é ou já foi proprietário deste ou de outro modelo congénere, mono ou bicilíndrico.
É por isso que começo por antecipar que ir até Dakar numa qualquer moto “dual purpose” de maior ou menor cilindrada é possível e inclusive sem levar qualquer jerrican de gasolina adicional. Portanto, asseguro-vos que a máquina apenas necessita de uma autonomia indicativa de entre 280 a 300 quilómetros, ou até menos. É certo que quando os imprevistos acontecem, por vezes é necessário ir à procura de “estabelecimentos alternativos” onde se transacciona o precioso líquido. Conto-vos um episódio na Mauritânia: chegados a uma povoação no meio do deserto, rapidamente ficamos a saber que a gasolina estava esgotada há seis dias nos postos de combustível convencionais.
Portanto, foi hora de colocar em acção o nosso “canivete suíço de viagem”, o João Luís, que voltou com dois mauritanos e um bidão com a dita “essence”! De pureza duvidosa é certo, mas nenhuma das motos se queixou, ou nos deixou apeados à conta disso.
Voltando ao início. Não vou esconder que parti para a expedição apreensivo e com a perfeita noção das diferenças entre a minha trail 650 com 20 anos e as big trail do grupo – as muito mais recentes e potentes BMW GS 1200.
Também estava consciente de que a minha Transalp não era a moto mais dotada, a máquina de sonho ou a mais “instagramável” para fazer o que fiz(emos). Contudo, garanto-vos que teve muito mérito naquilo que fez, sobretudo quando manifestamente era a mais velha do grupo, a mais limitada em termos de cilindrada, potência, travagem, suspensões, conforto e equipamento.
Ainda assim e sem espanto, revelou-se a mais fácil de levar na areia. E esse maior equilíbrio notou-se quando percebi as dificuldades dos restantes companheiros versus “vontades próprias” das GS 1200 naquele piso. Também fiquei satisfeito por não levar uma big-trail com malas laterais por entre o trânsito caótico e poluído da cidade de Dakar, nas três horas que demorámos a atravessá- la, rumo ao Lago Rosa.
Nova vantagem crítica para a minha Honda “seis-e-meio”. Portanto, ao fim ao cabo, resultou que fui e vim numa moto com quase 20 anos, sem percalços mecânicos e que me proporcionou muitos momentos de superação individual e até colectiva. No fim, todos já se riam, orgulhos e satisfeitos, pela Transalp não se furtar aos inúmeros desvios para fora do alcatrão. Eu inclusive, apesar de ter liderado o ranking dos tombos.
Simplesmente, ir!
Em duas semanas tomei a decisão de embarcar nesta aventura, o que creio poder acrescentar algum interesse a estas linhas. Não por eu ser demasiado “descontraído”, pelo contrário, mas porque simplesmente aconteceu. Afinal de contas, qualquer jornada de milhares de quilómetros começa sempre da mesma forma. Com o primeiro passo: a decisão de ir. Ainda assim, recordo – agora com certo desdém – das reacções aos olhos de alguns amigos quando lhes disse “vou a Dakar de Transalp!”. Para uns, eu seria simplesmente um “corajoso inexperiente” e para outros um “inconsequente inexperiente”.
Pois é, antes de partir recebi vários comentários por querer aventurar-me numa África um pouco mais desafiante. Uns mais animadores, outros mais dissuasores. E são sempre estes últimos que nos condicionam. Por isso, a dica que vos deixo aqui é de que não se deixem amedrontar com as superiores advertências feitas pelos arautos da pilotagem de sofá e ou dos valentes “viageiros” de fim-de-semana lá do café.
Entre a minha insanidade ou, quiçá, ingenuidade para tamanha empreitada, com dobrado despreparo de moto e condutor e entre a opinião dos bravos das voltas domingueiras para fazerem a foto da semana para as redes sociais, preferi insistir na minha franzina ideia de que conseguiria ir e voltar sem grandes mazelas. Para tal, cuidaria de me preparar em determinação, assim como prepararia a minha “velhinha” Transalp 650 para as inclemências dos 10 mil quilómetros que se somariam entre Portugal e Senegal.
Foi assim
Depois de ver o cartaz a anunciar “A Maior Aventura”” na página de Facebook do João Luís, a primeira coisa que fiz nesse dia foi pôr-me em contacto com ele. Acompanho-o nas redes sociais há vários anos e sempre apreciei as suas aventuras. Portanto, sabia que capacidade e experiência não lhe faltavam e, face a qualquer imprevisto, pelo muito que já passou na estrada sozinho, seguramente arranjaria logo meia dúzia de soluções (e assim foi).
Com esta ponderação preliminar, que durou a eternidade de meio segundo, logo lhe telefonei a manifestar o meu interesse em participar naquela proposta (para mim de sonho), mas receoso em ouvir a sua resposta sobre a não viabilidade de eu integrar o grupo com uma Transalp 650 de 2001.
Contudo, o João Luís, sem me conhecer e sem hesitar, disse-me logo que “essa é a moto perfeita para o que vamos fazer!” Confesso que tive nessas palavras o alento necessário para definitivamente me empenhar no assunto, embora sem me comprometer no imediato por ainda ter impedimentos pendentes no plano familiar e profissional durante as datas da expedição (entre 14 e 25 Fevereiro).
Lá desliguei o telefone com a promessa de que lhe voltaria a dar notícias em breve. Nos dias seguintes, sem certeza de que conseguiria libertar-me das minhas agendas, fui a uma consulta de viajante, cara por sinal, contratei uma extensão de seguro de veículos para o Reino de Marrocos, barata por sinal, e coloquei a moto na oficina da Caismotor, em Lisboa, para cuidarem do seu aprontamento para os “maus caminhos” para lá da fronteira de Ceuta. E posso adiantar que esta manutenção valeu pouco menos de metade do valor comercial médio de uma Transalp de 2001 no mercado de usadas. Mas fiquei descansado, porque sabia que iria ficar com uma Transalp de 2001 “nova”, pronta para tudo o que eu a pudesse sujeitar nesta épica aventura.
Com as questões familiares resolvidas, já só me faltava a confirmação de autorização para ir de férias fora de época. Esta foi a última questão a ser ultrapassada. Ou seja, só vim a confirmar a minha disponibilidade ao João Luís na segunda-feira da mesma semana que partiríamos para a expedição (já nessa sexta-feira). Entretanto, a moto já estava pronta… Mas faltava tudo o resto…
Acessórios
A minha Honda Transalp 650 antes desta correria preparatória apenas possuía uma top-case, uma ficha para carregar o telemóvel e um suporte para esse equipamento. Ou seja, a moto estava praticamente despida de acessórios. Por isso, tive que ir às compras! Dividi as necessidades em quatro vertentes: suportes de carga adicional, acessórios de campismo, alimentação (snacks), e vestuário/ equipamentos de segurança. Aumentar a capacidade de carga. Não consigo precisar a capacidade da top-case, mas permite-me guardar um capacete integral e um jet. Portanto, esse era o espaço inicial que dispunha, ao que se juntava um saco de depósito que me serviu noutras ocasiões. Precisava de maior capacidade de carga, pois esta viagem não “deveria” fazer com tão parco espaço oferecido por estes dois suportes. Graças ao pouco tempo para concluir a preparação da moto, a montagem de malas laterais nem sequer foi equacionada, o que tornou a compra de um saco de 40 litros à prova de água a decisão mais acertada. E barata, diga-se.
E agora? O que levar? Pois bem, na categoria de acessórios de campismo, segui as sugestões do João Luís, e à tenda recomendada para servir de abrigo – em caso de alguma tempestade de areia mais veemente – decidi acrescentar um saco cama e um colchão insuflável (embora não constasse do plano pernoitar em modo camping, estes itens acabariam por ser necessários).
Da lista proposta pelo mentor da expedição figuravam ainda outros acessórios, como uma lanterna ou um canivete suíço. A juntar às ferramentas da própria moto, levei ainda meia dúzia de chaves para facilitar a desmontagem dos eixos e pneus com vista à reparação de eventuais furos. Como mandei substituir as velhas câmaras de ar por outras mais robustas e adequadas à prática de off road, decidi incluir as antigas na bagagem.
Ao kit de reparação de furos que também levei, juntei ainda um metro de arame e cerca de dois metros de fita americana enrolada num bocado de lápis, retirando-a do rolo original para não ocupar espaço. Nada disto foi necessário, mas podia ter sido. Por pouca probabilidade de uso diário, foram acomodados no fundo do top-case. Por cima destes, reservei espaço para levar vários snacks de reposição energética, garrafa de água, uma camisola, o indispensável spray para a corrente, e ainda um dossier com dezenas de fichas
impressas para entrega nos inúmeros controlos de polícia dos vários países visitados.
Na top case, a logística ficou arrumada e praticamente lotada.
No saco impermeável guardei as roupas e demais objectos pessoais. O saco viajaria acomodado em cima do assento do passageiro, juntamente com o saco de depósito, ambos presos por quatro ganchos elásticos. E estas seriam as bagagens que eu iria movimentar todos os dias entre a moto e os alojamentos. Testei esta solução com eficácia, sendo que não senti falta dos “confortos” de possuir malas laterais. Para os doze dias previstos (que acabaram por ser quinze), decidi levar seis conjuntos de t-shirts de secagem rápida, e igual número de cuecas e pares de meias.
Adicionei à minha palamenta um cordel e um pequeno frasco com sabão em pó, pois previ uma lavagem de roupa a meio da viagem em Saly, a sul de Dakar, onde segura e rapidamente as temperaturas permitiriam a secagem da roupa durante a noite. Resultou.
No saco levei ainda um conjunto de roupa térmica interior, que utilizei entre Portugal e Tata, cidade situada depois de cruzar o Atlas, já mais a sul de Marrocos. A partir daí, no Sahara Ocidental e rumo à Mauritânia, as temperaturas começaram a subir (tivemos um período com 42° de máxima), pelo que essa camada de vestuário só a viria utilizar novamente no regresso.
Como foi ir de Transalp 650 a Dakar?
Depois do meu regresso a Lisboa, posso afiançar com propriedade que a minha Transalp 650, passados os seus quase 20 anos de matrícula, superou todas as minhas expectativas e receios. Foi e voltou sem nunca dar o mínimo de preocupação e fê-lo por uma décima fracção dos custos das restantes big trial.
Não será por isso de descartar a sugestão que deixo a quem tem motos de outros segmentos: Não é má ideia comprar uma Transalp (ou equivalente) para se lançar numa aventura desta natureza, deixando a sua “estimada” actual na garagem. Isto porque, o mais importante é ir e voltar!
Ainda assim assumo que, em vários momentos, para conseguir acompanhar as quatro BMW 1200 do grupo, tive de contar com a paciência deles e rodar nos limites de segurança da máquina e do piloto, sobretudo em asfalto. Todavia, na maior parte do tempo, rolámos em velocidades acessíveis à minha “seis-e-meio”, porquanto as circunstâncias de segurança do piso e do entorno assim o exigiram.
Em termos de esforço, claro que uma viagem desta natureza e a percorrer distâncias diárias elevadas provocam cansaço. Mas quando se embarca num projecto destes, o entusiasmo mental sobrepõe-se ao desgaste físico. A viagem foi dura e intensa, mas não o foi só para mim.
Os companheiros das BMW também sofreram, embora admita que talvez um pouco menos. Mas vi-os a todos a testarem os seus limites físicos. Dia após dia. Portanto, percebi que a minha desvantagem em termos de conforto, embora existindo, não foi assim tão significativa. Creio.
Antes de terminar, aproveito para agradecer aos meus companheiros de viagem. Ao João Luís, ao Filipe Silva, aos irmãos Luís Araújo e João Araújo – o meu muito obrigado pelo espírito de grupo e entreajuda que soubemos construir. Na realidade, esta união de grupo foi mesmo verdadeira e genuína. Tanto que nós, o grupo de Saly (local no Senegal onde tivemos esta peregrina ideia), começámos a falar em embarcarmos numa outra ainda maior aventura! Seria para os lados de Moçambique e países vizinhos…
Agora sim, espero que este relato tenha contribuído para a desmistificação da ideia de que este tipo de viagens só estão ao alcance das big trail e de pilotos experimentados. Na verdade, o mais importante não é a moto com que vamos ou as habilidades de condução que temos, é a nossa determinação em dar o primeiro passo. Eu dei. E vocês?
A MAIOR AVENTURA by João Luís
O João Luís é um nome bem conhecido entre os viajantes de moto. Há 14 anos decidiu agarrar na sua BMW GS 1200 e partir pelo mundo em busca das suas próprias histórias e aventuras. Depois de inúmeras viagens a solo por terras longínquas como Índia, Rússia, Médio Oriente, África e outras tantas pela Europa, decidiu partilhar os conhecimentos e paixão com quem com ele queira viver uma verdadeira experiência de viajante.
Criou um formato de expedição à sua imagem, muito diferente de tudo o resto, cunhando-o como proposta para uma experiência de uma verdadeira viagem de descoberta. Há um plano genérico, há o conforto de se estar com um homem experiente e profundo conhecedor dos territórios, mas há também todas as peripécias associadas aos desconfortos e dificuldades próprias do desconhecido, do improviso do momento e do desenrasque no imediato.
Foi isso que vivemos durante desta primeira edição da “A Maior Aventura”.
Videos d´A Maior Aventura – Fevereiro 2020