M, de Mário e de Mundo…!
Tenho à minha frente um homem grande, aguardamos que chegue o peixe fresco encomendado à brasa, ali ao lado o mar faz-nos companhia para uma conversa que se fará em torno de certos e muitos dias de vida passados em cima de uma moto.
Pelo mundo fora.
Em boa verdade acho que esta conversa à mesa terá começado muito tempo antes, algures no deserto, quanto tempo não sei, numa conversa despreocupada com um colega meu, respondendo-me à pergunta que lhe fiz, se imaginaria a enormidade de fazer aquilo tudo lá em baixo a pé, ideia que me saiu por sair, talvez porque o vazio e a imensidão do cenário que sobrevoávamos me tenha feito escoar a imaginação:
– Deve ser mais ou menos como ir de mota de Vladivostock a Lisboa, como os outros…
Na altura nem a curiosidade nem as circunstâncias me levaram a deslindar tão estranha resposta.
Um dos outros, soube depois, era este homem grande que agora se preparava para me contar essa e outras histórias.
Comecemos.
Ponto de partida em 1953, vindo em correria para nascer em Lisboa e regressar a Angola, talvez a badalada magia do continente de sua infância o tenha marcado para um futuro e um destino sem lugar, de todos e nenhum lugar, percorridos de avião, de helicóptero, de moto, só, muito só, acompanhado por vezes.
A vida de criança e de adolescente dividir-se-ia por geografias ditadas por escolhas paternas, em busca de um local onde pudesse criar a família, em tempos tantas vezes portadores de obstáculos, saltando paisagens e continentes, chegando um dia a um Canadá que parecia à época uma boa possibilidade..
Um certa tarde no liceu, quando a parte teórica dos ensinamentos era posta à prova e levada à prática na construção de trabalhos que comprovariam, ou não, que a matéria se incorporara na massa cinzenta do aluno, decide que pretende construir… uma moto, para tanto recorrendo ao aprendido na escola e ainda numa revista que à época fazia furor no ramo, a Popular Mechanics, usando por base um ‘ kit’ baseado num protótipo semelhante à Mini Monkey, um sucesso absoluto que a Honda disponibilizava ao mercado, mas dispensando o motor de 50 centímetros cúbicos que completava o conjunto e que se assemelhava ao de um corta-relva. Haveria de esperar uma oportunidade mais interessante, pensou, e ela surgiria através de um anúncio que oferecia o engenho de uma Norton 175 a 2T.
Estava encontrada a primeira moto, digna substituta da que lhe fora negada anteriormente por um pai que via com olhos de preocupação o espírito das duas rodas.
Algum tempo depois, aos dezassete anos e na altura a viver em Caracas, Venezuela, pega na sebenta e anota necessidades, trajectos, precauções e outros considerandos que o levarão, e a um amigo, até ao Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, montados em garbosa Jawa 250, a Panelka que muitos guardarão ainda em suas memórias.
Por alturas da partida, chega a notícia, conseguira entrada na faculdade no Canadá, o que retirará Mário deste périplo, não seria a primeira nem a última vez que, preparado para o arranque, acabaria por não estar na casa de partida, é assim a vida, pensa-se, projecta-se, trabalha-se e depois … quem for que vá!
Andavam de difícil transferência do papel para o terreno as viagens esmiuçadas, o mesmo não acontecia com a geografia que o acolhia, em 1973 haveria de chegar a Força Aérea, no nosso Portugal, nosso e dele, se era homem do mundo não seria por isso menos cá da terra, mas não seria ainda altura de por cá ficar, regressaria uma vez mais então ao norte do continente americano, era já terra dele um pouco também, o bichinho da logística e aventura sobre duas rodas mantinha-se e aquele era um ponto de partida com potencial, a receita seguia seus trâmites, prever, ponderar, prevenir e por ali fora, sair-se-á de Montreal e a Califórnia será o destino, é quase um costa a costa, sempre são quatro mil e oitocentos quilómetros de caminho, montado numa Virago 650 que se antevê óptima companhia, o dia aproxima-se no calendário e quando está quase e ali vem ele, de novo o destino a fazer das suas, vem lá emprego, o primeiro por sinal, pilotando helicópteros no Canadá e isso não é coisa que se recuse, pois não é não senhor, e se lá se vai a Califórnia, venha de lá o céu aberto, viria no futuro trabalho para a ONU, pilotando helis e aviões, muita África saboreou de novo, África Ocidental, do Benim à Serra Leoa, do Burkina Faso ao Mali, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné e Libéria, Nigéria e Senegal, Togo, tanta terra, tanta gente sobrevoada, e tantas vezes só, que tempos aqueles pulverizando tanta água tanto rio, combatendo-lhes a cegueira trazida na picada de mosca, quanta solidão atrás de solidão, quanta aprendizagem de se estar sem nada mais.
– Conta Mário, Vladivostock porquê?
– Vladi surge em conversa com um amigo o Ricardo, e a ambos agradou o périplo, desafio grande e longo, trajectos grandes, trazem uma lista grande de incógnitas, de caminhos por desbravar, imponderáveis que não se esboçam numa sebenta, havia por ali incontáveis quilómetros de vida e obstáculos para usufruirmos da moto.
– E lá foram?
– Não, o Ricardo acabou por não poder e a partir daí acabei por projectar a ideia a ‘solo’, mas as coisas acabariam por sofrer nova reviravolta, tempos antes havia feito uma ida de Luanda a Maputo, cinquenta e dois dias na luta, com dois bons parceiros, o Alberto e o Paulo, e assim pareceu-me fazer sentido propor-lhes esta ideia, estudaram-na e acabaram por alinhar.
– E lá foram os três?
– Uma vez mais, nem sempre é como pensamos que vai ser, foi sugerido mais um nome, depois outro que falou noutro e … quando olhei estávamos seis pessoas pensadas para esta pesada travessia, e quando falo em pesada penso em toda a logística, tempo e problemas que inevitavelmente uma coisa desta acarretava.
– Encaixaram bem?
– Vamos por partes. Uma das coisas infalíveis que numa empreitada desta envergadura é que alguns problemas irão surgir, da mais variada natureza, seja por imponderáveis mecânicos, por questões logísticas ou outras que o próprio terreno e suas gentes apresentem. Por todo este conjunto de desafios, é importantíssimo, senão fundamental, conhecer-se bem a natureza de quem nos acompanha, de modo a antecipar reacções e a estudar a resposta que a cada um possa ser pedida. No meu caso, e por incrível que pareça, acabei por não poder chegar a conclusão alguma pois numa fase ainda muito inicial, havíamos chegado à Mongólia e preparávamo-nos para a atravessar, acabei por sofrer um contratempo de consequências irreparáveis, passei forte por cima de um tufo de erva, rija que só visto, arrancou-me a suspensão traseira e acabei ali mesmo. De uma viagem a dois, que passou a um e depois a três terminando em seis, seriam cinco a terminá-la. Dá agora para perceber que o imprevisto é o nome do meio destas situações.
Chegaria a Ulan-Bator o nosso homem grande, não sem antes negociar o seu transporte e o da sua moto, primeiro com um passante que de inglês sabia nada e seguiu seu caminho, depois com outro que por meio de tentativas lá chegou à fala com um possível intérprete via telemóvel, assim fechando um preço, para logo de seguida verem regressar o primeiro, o tal quase incomunicável, que aparecia já com um transporte para homem e moto e que foi compensado com os dólares suficientes para amenizar este ‘ regresso em vão’. Tudo tratado, imponderáveis arrumados e seguir-se-iam doze horas de caminho, pelo desconhecido, pelo silêncio, pelo que como costumamos dizer, pelo que ‘ Deus quisesse’.
E finalmente, a capital ao nascer do sol.
É assim este universo de percursos’ heavy distance ‘, o problema não se deseja mas acontece e na hora a única possibilidade que se oferece é resolvê-lo, escutamos como resposta à nossa curiosidade na capacidade de improviso requerida, e atiramos nova questão, há sempre uma ideia à mão de semear? .. e somos levados a uma queda, no já longínquo ano de 1989, numa aposta a sós que o levava de Abidjan a Lisboa, atravessando a fronteira entre o Burkina Faso e o Mali, mazelas braço acima, moto maltratada.
– E o que se faz nessa altura?
– A primeira coisa a fazer é um género de orçamento aos danos, perceber como está a moto e como estamos nós … percebi que o ‘kit de 1ºs socorros’ que tinha comigo não me dava a solução necessária ao que encontrei, uns golpes feinhos nos braços e nas costas, acabei por usar aquela terra vermelha para estancar o que me preocupava.
Para a moto arranjaria tempo e solução mais tarde, sentei-me então à sombra de um embondeiro e acendi o meu cachimbo.
E acabei por seguir o meu caminho.
Está o nosso almoço a chegar ao fim, a conversa vai calma e boa, não apetece parar, desafio ainda este homem grande que acompanho a dar cabo de um goraz também ele nada pequeno, a contar-me qual a maior de todas elas, dessas saídas ao caminho da descoberta dos caminhos.
Que foi de Porto Alegre, sul do Brasil, que passaram a Ushuaia, o ‘fim do mundo’, seguindo depois para um longínquo Canadá onde chegariam a Tuktuyaaqtuuk na região de Inuvik, fazendo um ponta a ponta em todo o seu esplendor, seguindo-se o Alaska e depois a Califórnia, nova travessia e chegada a Miami, toca e foge em Key West, regresso a Miami, e por fim por ali acima até Toronto e ponto final. Começaram quatro mas dois tiveram de sair a meio, coisas de trabalho, um ponderável afinal de contas neste caso.
Não vou começar nesta vida, nem tenho moto, mas pergunto, Mário, alguma regra sagrada nestas idas em grupo?
O retrovisor.
Porquê? Pergunto.
Um dia explico-te, responde-me.
Obrigado Mário, do Mundo e das Motos.
Pelo almoço, pela conversa e por todas as histórias, incluindo as que não couberam aqui.