Viagens na minha Quarentena
Tenho tempo por estes dias, provavelmente sempre o terei tido mas já nem dava por ele, corria-o por entre mil coisas e nunca me sobrava, quanta coisa boa me terá passado ao lado quando saltava de coisa em coisa sem sequer lhe sentir bem o cheiro, o sabor, a grandeza do momento?
Hoje de manhã ao acordar, bem cedinho porque agora as horas da madrugada não assustam, antes convidam sedutoras a serem espreguiçadas, fiquei-me pouco por ali a viajar no tempo, fui andando, andando, cheguei até à década de sessenta do século passado, vejam lá bem.
TV a preto e branco, na sala lá de casa está o meu pai de gravata, sentado no sofá, é o único com autorização para jantar mais tarde, não lhe foi difícil obter o estatuto, ele é o homem que dá as ordens por ali, eu sentado na frágil cadeira de palhinha aguardo que chegue a sopa que nunca me apetece, a sopa demora e eu arrisco dali do fundo … ‘ pai, posso ver o jogo consigo?’ … ‘ podes…’, e eu espantei-me mas não hesitei, de um salto substituí o caldo verde pela magia da bola nos minutos seguintes da minha vida.
Bola a preto e branco, pausada, um ritmo do tempo com tempo, rapidamente olhei às equipas e escolhi uma para ser a minha naquele bocadinho, ‘ pai, por quem é que está?’… ‘ cala-te senão voltas para a mesa’, e eu calei-me e esperei sossegado até alguém marcar um golo e o senhor que falava dizer três vezes seguidas, golo, golo, foi goolo do Real Madrid, um golo com dois ‘ós’ e eu fiquei feliz, não pelos espanhóis mas porque me havia baldado ao caldo verde.
O meu pai também era verde, do Sporting. Eu não!
Artur Agostinho, era aqui que queria chegar e trazer-vos este homem, foi a minha primeira grande referência enquanto locutor, narrador, comentador, escolham à vontade pois em seu génio até motorista foi, o Miguel d’ O Leão da Estrela.
Deixemos então a bola sossegada, tal qual o caldo verde e foquemo-nos pois nesta gente que nos narra, nos traz falado aquilo que observamos, que nos guia pelo sinuoso mundo da emoção vivida à distância.
Alves dos Santos, incontornável e irrepetível.
Gabriel Alves, outro que tal, nunca ninguém falou tanto com as mãos… e sacava umas que até pareciam duas, ‘ chuta com o pé que tem mais à mão ‘ disse um dia, e nós nunca mais o esquecemos, porque gente assim sabe o que diz.
Mas trago-vos mais.
Rui Tovar, por exemplo, que no Mundial de Espanha em 1982 deu uma cabazada à Larousse, espécie de luta titânica no universo da sabedoria e do pormenor…!
Ripa na rapaqueca, talvez tenha sido o último destes nossos grandes heróis, ‘o que é que é isso ó meu?’ .. perguntava o Jorge, esse Perestrelo inconfundível, ‘era daquilo que o povo dele gostava’, e o povo dele éramos nós!
Vá, ainda vou um pouquinho mais longe, Nuno Matos, admito, um gajo escuta-o e cai com ele do banco abaixo, homem bom em seu ofício, essa é que é essa!
E pronto, ou prontos como dizem os meus filhotes quando chego com reprimendas, agora chega mas é de coisas da bola, de homens do microfone, salteadores de histórias, salvadores de momentos nunca perdidos!
Uma vez mais, como fiz a semana passada, imagino-vos perguntando-se, mas se isto é local de duas rodas, porque raio vem ele com esta conversa?
Ora lá está, por isso mesmo, pela importância da coisa!
Sabendo-me, sabendo-vos, sabendo-nos a todos nós já meio avariados da cambota, com a caixa de velocidades do dia-a-dia a marcar passo num sala-cozinha-quarto-sala outra vez, saltitando por entre o almoço, a sesta, o tele-trabalho e a Playstation, a XBOX ou a Nintendo, passe a PUB, buscando nos jogos de simulador aquele cheirinho a gasolina que nos entrava casa dentro em fins-de-semana de MotoGP, a verdade meus senhores e minhas senhoras é que a pessoa já sonha com a voz do Rui Belmonte a chamar-nos para a mesa à hora de jantar, a explicar-nos a trajectória ideal se quisermos ser os primeiros a chegar ao sofá, já esperamos que nos analise e explique os porquês de qualificarmos menos bem ao pequeno almoço e a nossa performance durante o período de videochamadas!
Não desfazendo do Miguel Praia, menos ainda do Vítor Martins, deixem-me lembrar-vos dois dos momentos que nos deixam angustiados pela distância a que os vemos no passado e os não vemos no futuro: aquele pequeno comercial a uma gasolineira, com os acordes de música que, como Pavlov fez com o cão, a nós nos fazem salivar pelas imagens seguintes e o ‘ sejam bem-vindos a mais um ‘ com que o Rui nos recebe nas manhãs e tardes em que a sua voz se torna música aos nossos ouvidos, apenas superada pela dos cavalos da Tech3 do Falcão que voa em todos os nossos lares, e que bem-vindo seria, seriam aliás, nestes dias em que o tempo passou a ser olhado como algo que afinal pode parar um pouco para dar lugar à saudade das pequenas grandes coisas.
Escrevi algures um texto em que exaltava a beleza de uma dança de palavras escutadas se, como num tango, dois fossem os eleitos.
Hoje, confinado, ensimesmado, trancafiado, despojado, quase perdido, viajo ao dia da primeira vitória do nosso Miguel em Moto 2, recordo a emoção aritmética fechada num parêntesis ao estilo de Belmonte, guiando as palavras com o cuidado requerido nas últimas curvas de circuitos que não perdoam nem mínimos erros, e arrepio-me ao juntar como sobremesa a louca poesia trazida na naturalidade carioca de um Guto Nejaim, que haveria de nos conquistar em seus dribles à ansiedade, gritando Torga, declamando Lopes de Mendonça, trazendo A Portuguesa a ser dançada num torpor axadrezado, a pessoa está a escrever isto e até fica abananada ao pensar em quando poderá ver repetida manhã assim, o Rui, o Guto, o Belmonte e o Nejaim, tal como o Tovar, o Alves, o Matos e o Perestrelo, e nós todos indo por ali com eles, escutando e chorando uma alegria ensinada nos pátios de escola, a emoção de ganhar ou perder, nós indo por ali dizia eu, até encontrar o Artur Agostinho uma TV a preto e branco e um caldo verde a que escapámos algures em mil novecentos e troca o passo, como dizia o saudoso Necas, este não um locutor famoso, mas simplesmente o meu pai.
A ele me levou a quarentena a esta manhã.
Afinal, nem tudo é mau por estes dias!
