Crónica João Pais #30

João Pais, cronista

Jerezéjáli

– Por favor, para Jerez, vou bem por aqui?

– Ó homem, se vai bem?… Não podia ir melhor, é sempre em frente por aqui abaixo, tá a ver? … Depois encontrando o mar é virar à esquerda, vai andando, andando, vá com vagar que não há pressas, em começando a ouvir falar espanhol é perguntar de novo que tá quase lá!

Este era o GPS falado, cantado ao vivo e a cores que todos merecíamos desfrutar esta semana, lá para quinta ou sexta feira, quando de trouxa embalada zarpássemos à Andaluzia, que por lá é que vai ser, parece mentira mas não é não senhora, gato escaldado de água fria tem medo é sabido, parece que nos estou ali a ver por voltas de finais de Fevereiro inícios de Março, quando preparávamos café e torradas para o GP lá de longe e a desoras que nos acalmava os nervos da espera, e se ela este ano é longa meu Deus, mais ainda sabendo nós que o Miguelito já se acachapou na sua KTM azulinha, que para o ano laranja há-de ser, mais agoniados ficamos neste ramerrame de curvas à esquerda, à direita e curvas em frente. Não nos digam que não existem, existem sim, olhem lá o que nos disse o bom homem no parágrafo inicial, é sempre em frente, e disso sabemos nós, mais a direito não poderíamos ir, vamos direitinhos ao Falcão, às fripráquetisses, às quês um e dois, vamos num foguete até chegar ali por volta das treze em ponto de domingo, ficaremos quietinhos sem fazer barulho, a olhar para as luzes vermelhas que se apagam e soltam uma quantidade infinita de cavalos, num caleidoscópio de gloriosos malucos de máquinas voadoras, onde nós todos voamos também, cada um em seu sofá, infelizmente, muito infelizmente, mas antes assim que nada, cada um com suas mezinhas e preparos que empurrem o mais ilustre Falcão de que há memória em Portugal Continental, mais Madeira e Açores, e se aqui sabemos que o relógio anda de uma hora a menos sabemos também que não há fuso que corte a raiz ao pensamento, e eles pensarão connosco certamente que o lugar mais bonito do nosso rapaz Oliveira é o mais acima possível naquela coluna à esquerda do écran que nos solavanca o coração cada vez que ele sobe um degrau.

Mas voltemos ao início, onde o nosso homem que em seu vagar nos desenharia caminho certo para o destino pedido, desapoquentando-nos de arrelias em demasia trazidas nas encruzilhadas da estrada, também ele no domingo pousará seu cajado e sua pacatez, ele como todos por ali e por outros lados também, em Rabo de Peixe, onde sendo uma hora a menos é também hora do rapaz das motos, como o será do Minho ao Algarve, de Trás-os-Montes à Costa Vicentina, das Beiras aos Alentejos, não haverá um pedacinho desta terra que já tanto viu que não saiba que em Jerez aqui ao lado haverá um dos nossos.

Dirão que exagero.

Dou de barato, talvez sim, talvez tenha esticado um nadica a corda do entusiasmo luso por estas coisas, perdoem-me, por mal não foi, talvez premonição apenas, quem sabe, oiçam bem, quem sabe chegará um dia a corrida em que todos pararemos de facto, sustendo respirações num uníssono burburinho de espanto e admiração, porque um dos nossos, ali de Almada, onde por certo o Cristo Rei lhe foi abençoando dons e virtudes de aerodinâmicas velocidades, lá do alto certamente lhe indicando pequenos grandes nadas que lhe afinassem trajetórias, porque um dos nossos escrevia eu, estará um dia de espada em riste no assalto final ao castelo que guarda o ceptro do campeão.

Dirão de novo que exagero, mas desta vez não sei se …

Ele ganhou por onde passou, aquele olhar trazido no seu sorriso quando em pequeno ganhou a sua primeira moto deixava adivinhar que lhe haviam aberto as portas para a mais louca correria, para a mais ampla liberdade, para a mais arrojada aposta que era a de correr, acelerar, curvar, travar um pouquinho mais tarde, descobrir milésimos curva a curva, que era fazer do bruááá de tanto cavalo a mais bela melodia.

E nós por aqui, enquanto escutamos deliciados a simplicidade de duas rectas que nos levarão da planície alentejana ao frenesim em la Frontera, sonhando com o mapamundi de gentes que nos envolvem em dias de corrida, nós aqui vamos começar a acreditar que se calhar não é exagero proibido este, em boa verdade vamos olhando já de um modo diferente aos asfaltos dos nossos circuitos, vão despontando mais e mais crianças grandes, eles e elas, com aqueles fatos que os fazem andar muito direitos até se sentarem nas suas ‘mais que tudo‘ e acelerá-las sem dó nem piedade.

Esta semana, andava eu de roda de uns escritos em torno de alguns dos que nos vão cativando fins-de-semana de emoções quando tropeço numa fotografia de dois amigos de longa data, junto com o filho de um outro amigo e mais um pequeno amigo do seu tamanho, e todos celebrando uma manhã de duro ziguezaguear de aprendizagem neste mundo de deitar corpos em curvas para sair voando em rectas.

E em boa verdade confesso, que se o nervoso miudinho me dá por entre semáforos de luzes que se apagam e bandeiradas de xadrez, a mim simples espectador, é porque sei bem, ou melhor talvez apenas o imagine, os milhares de quilómetros de dor e solidão, de chuva, frio e vento, de quedas e recomeços, de sonhos cujo contorno nunca perdem a nitidez da crença de quem não desiste.

E não correndo eu, o que a modalidade agradece, não deixo de me atirar a este martelar de consciências de gente igual a mim, que indubitavelmente adorará todos estes nomes e rostos a partir do dia em que lhes abrir a porta e os deixar entrar em seu carrossel de emoções.

Para a semana vou à escola, a uma escola de gente desta, aprender como se aprende.

Nada está perdido parece, as sementes estão a florir.