Crónica João Pais #36

João Pais, cronista

Um menino que ganhou uma moto…

Esta é a crónica que qualquer um de nós poderia ter escrito.
Diríamos, engasgados em nó que faz chorar a gente crescida, duas singelas palavras que em sua simplicidade expressassem tudo, exaltassem com equilíbrio sincero tamanha dádiva de orgulho:
Obrigado Miguel.
E depois, depois recordaríamos mil vezes o voo picado do Falcão, acelerando abraçado na certeza de que ali em frente lhe surgiria um milésimo de segundo a chamar por ele, um pedaço do asfalto que lhe mereceria a ousadia.
E ele voaria, voaria ágil e inalcançável!
Já cronicando eu, tenho de trazer desde já uma coisa, cumprindo promessa feita no final da tarde de sábado a um amigo meu, um daqueles seres humanos que só de escutar já dão gosto de lembrar e de escrevê-los.

Prometi-lhe por sua exigência um primeiro parágrafo, e assim cá vai ele meu camba cota Rui, não é logo logo no início da inspiração do prosista mas sei que me perdoarás, meu Cenoura de África e do Mundo Inteiro:
‘E da longínqua Estíria chegariam as novas, trazendo impante Falcão arribado aos fortes ventos dos majestáticos que se cravam no tempo.
Direis que exagero, mas isso perdoo-vos.
Exagero nenhum, justiça apenas a um franzino menino que em criança viu este dia e no-lo anunciou.
Miguel, senhores leitores, Miguel está aí … aprendamos a desfrutar e tratemos de empurrá-lo arriba acima, temendo nada que chegada é a hora …!’

Pois é, estava a frase gravada e guardada, hora agora de ser destapada, celebrada, cantada, levada a todos, em crónica que tenho a sorte suprema de assinar.

Falo-vos então daquele finalzinho de corrida vivido num quarto de hotel em São Paulo, por este escriba de mezinhas com ciência e preceitos, que assiste ao directo dos GP’s com um delay de segundos em relação ao LiveTiming ali sempre à mão de semear, torcendo os dedinhos em rezas devotas, pedindo nesta manhã ao Rafael santo das pistas que deixasse aquele pódio com o nosso Miguel, soprando ventos contra um Mir que se chegava ameaçador ao bolo-rei após o destrambelho de Dovi já fora da liça.

E eu naquilo, olhando as curvas esganiçadas ao limite num lado e a tabela das distâncias entre eles no outro… Eu tão enervado quanto imóvel, respirava até baixinho para não atrapalhar, sozinho sem um amigo sequer a quem olhar expectante e esperançoso, ai que falta me fez a troupe de avariados da tola cascalenses que tudo e tanto me ensinaram, já vai a ‘last lap’ a chegar ao fim, vou para festejar o pódio saltando livre no espaço de uma cama que era a minha bancada e… Vai daí Rafael, ele mesmo adentrando-se à festa, um santo santíssimo agora percebo, condoído por tão genuíno encosto devoto ao espaldar da cadeira de todos nós, os milhões de portugueses que nos Oliveirizámos apaixonados, vai daí ele e pega no 3º classificado Miguel e coloca-mo ali em cima de tudo, eu que já ia lançado em festejo dou por mim mudo e quedo, refiz a intensidade do salto e a proporcionalidade do grito e voei feito Falcão, como ele, como todo e qualquer um dos que me lê, voei esbaforido e de asa aditivada por tão perseguido, desejado, desenhado, sonhado e implorado momento.

Depois respirei, bebi água, respirei de novo, achando aquele quarto tão pequeno para a correria de minha alma, abri três caixotes de mensagens, caixotes gigantes com palavras e abraços de pessoas enooormes, assim mesmo com três o’s, que me agarravam à distância, tornando-me um mais nessa multidão em êxtase.

De Singapura ligou-me o Buzinas, amigo Francisco de tão longa data e que é a pessoa que melhor imita o som delas, das buzinas, comovendo-me por lembrança sem distâncias, rindo-nos de felicidade infantil e recordando sua promessa da véspera, ele quase indo dormir que por lá eram 10 da noite, eu quase a fardar-me que por ali eram 10 da manhã… E os leitores pelo meio de tanto fuso, todos nós com o nó desatado numa garganta que apenas queria gritar Oliveira.

Ligo ao Guto, quero um poema, que ele mo cante e que e eu lhe faça voar a rima até vós todos, que dancemos sem vergonha a dança da gente feliz.
Da corrida, daquela propriamente corrida e vista, que poderei dizer? Logo eu que disto é mais bolos, pouco sei de pneus e trajectórias, de tácticas e afins, eu que desde a largada até ao xadrez pareço um mini canguru que salta entre tabelas e imagens, que sofre de um zapping emocional que rebenta a paciência de qualquer compincha que arrisque presenciar o acontecimento ao meu lado.
Mas, em meu abono, posso e devo escrever que vi aquele momento, uma curva antes, quando Miller e Pol bicavam o poleiro, vi Miguel fixando o olhar, quer dizer imagino que tenha visto, embora jurasse que o vi de facto, descodificando o que viria de seguida, no entorno final, colocando-se predador no sítio certo para atirar com todo o trabalho de uma Tech 3 que tem tanto mas tanto dele em direcção à nesga de tempo e espaço a que Rafael também ele mereceu assistir, e ir aqueles metros fora, recordando um dia em que o seu pai Paulo lhe abriu uma porta onde o aguardava uma surpresa que era uma moto, uma pequena e infinita moto.

Poderia estar aqui a tentar encontrar mais palavras que adjectivassem com justiça a chegada de MO ao patamar dos gloriosos, mas estou certo que delas já o leitor tomou sabor nas parangonas divididas em toneladas de mensagens entregues em célere cadência por aplicações que não nos deixam espaço a ignorâncias de assuntos tais, numa azáfama de informação espontânea nunca dantes vista, multiplicando por velocidade meteórica o esforço que no antigamente o soldado que anunciava o pendor da batalha gastava em penosa jornada.

Hoje a coisa acontece, é teclada e está no mundo, que poderia eu acrescentar à vossa, à nossa, à minha euforia oliveirística que vocês não tenham já experimentado nestas horas que separam a coisa acontecida e vivida da coisa posta em crónica?

Regresso agora a casa, venho de trabalhar, são 01h45 da manhã, passei pelas nuvens de novo, agora em avião grande como grande foi a vitória de Miguel.
Recordo ainda o momento em que a doze voltas do fim, vendo-se sem travões e rasgando a pista a cerca de duzentos e oitenta quilómetros por hora, Maverick teve apenas tempo de ‘meter duas abaixo’, reduzir o momento da decisão aos duzentos e trinta e… saltar fora em andamento, entregando à geometria da queda o corpo e o destino.

Viñales saiu ileso, e todos nós compreendemos pela segunda vez consecutiva naquele circuito que estes rapazes que nos encantam são domadores de feras que não lhes dão um segundo de descanso, não há tréguas na busca dos limites.

Enorme Mav, enorme Mig.

Obrigado aos dois.

E obrigado a todos vós por se irem mantendo por aí!