Crónica João Pais #38

João Pais, cronista

Hitting the Apex

Hitting the Apex

Misano vem aí.
San Marino.
Riviera di Rimini.
Em dose dupla, como o Red Bull Ring do nosso contentamento.
Do nosso êxtase.
Não há fome, diz-nos o povo, não a há que não dê em fartura, olhando agora ao destrambelho que foi aquele mês de Março com o dia oitavo desenhado a bold e a vermelho, que por demanda viral nos forçaria a uma espera de cento e vinte e seis dias, um cento, duas dezenas e mais uma meia dúzia deles, contados ao minuto até que voltássemos a ver as luzinhas do semáforo que nos destempera a lucidez e nos leva na galhofa de crianças grandes, libertas das grilhetas da compostura, voando com seus heróis, montadas em mil cavalos de duas rodas.

Vem aí Misano mais Misano e logo de seguida a Catalunha, vai dar para poucos arrumos à sala nos entretantos, é cumprir o estipulado e sentarmo-nos de novo, logo agora que Miguel, o Falcão descendente de Viriato no seu grito guerreiro de alma lusitana, logo agora quando estando ele à vista da presa não hesitou e em modo predador saltou em cima de quantos pela frente o separavam do clamor da vitória.

Mas entre isso, que é passado, e o que lá vem, andava eu ainda a desembananar o meu estado de torpor após a corrida que mais vezes sonhei por antecipação e mais vezes observei em mil vídeos chegados de mil lugares, e eis senão quando um bom amigo me envia por mensagem uma dica acerca de um documentário que não poderia deixar de ver na Netflix, e eu anjinho que nem à coisa lhe conhecia a existência, coisa de 2015, cinco anos que já lá vão… vós, muitos de vós, imagino-vos carecas de vê-lo, vai daí e vou logo lá e mal começa já vou rendido …

Com as imagens de um pequenote que algures em Itália inicia seu sonho, um pequenote e seu chefe de equipa que é o pai – e onde é que nós já vimos isto??? – escuto em voz off o início da narração, estaco surpreso, oiço de novo quem um dia tanto me encantou por sua busca de liberdade selvagem, um personagem daqueles que se guarda para sempre, quem me leva a passear nas palavras trazidas é Tristan Ludlow, esse mesmo, o filho do Coronel Ludlow, ajudo-vos, Brad Pitt, filho de Anthony Hopkins, e só este momento já me avisa ao que vou, terra de emoções, de monstros que nos marcam a vida e mostram o caminho das pegadas que não se apagam, um documentário de lendas vivido por uma lenda.

Viajarei de Rossi a Stoner, de Dani a Jorge, deambularei por vitórias épicas, quedas do outro mundo, da retumbância ao descalabro, andarei de trancos a barrancos como diria Alfonso Martinez de Toledo, mas uma coisa me estará vedada a ver, ali não se desiste, é cair e levantar, tapar lágrimas e dores, esconder mazelas, cerrar os dentes e cerrar o punho, conhecerei à vista outros pilotos, heróis de tantos vós que me leem e que apenas agora tenho a sorte e oportunidade de incluir em meus dias, com mais afinco em meus fins-de-semana com GP no calendário, verei nascer um menino de dois M’s que se irão imortalizar.
Vê-los-ei no seu íntimo, no seu âmago, no seu eu mais inacessível e ao mesmo tempo mais fascinante.
Ah, como entendo agora os Rossistas.
E Dani.
E Lorenzo, até nele colho motivos de empatia.

Casey Stoner, imagino, terá deixado loucos de vazio quem lhe entregava a encomenda da emoção da vitória, Casey ele mesmo, Casey livre e campeão, quão distraído na vida se pode andar para apenas se lhe conhecer imagens de poster e zero de sua história, sacrílego, apelidar-me-ão, e sim, aquiesço, aceno envergonhado… e peço-vos, e a ele, desculpas.

A páginas tantas, porque um documentário narrado por Brad que foi Tristan é sem a mais pequena dúvida tão belo quanto um livro, a páginas tantas vejo nascer e crescer por ali um tal de Marco, italiano puro e duro acho eu, nos caracóis e no sorriso, e não faço ideia se outros italianos assim se parecem em caracóis e sorrisos, mas fosse o documentário mudo e eu saber-lhe-ia, ao Marco, as cores de sua bandeira, Marco Simoncelli, e esse já o nome e a história lhe conhecia, das vezes que em Jerez ou Valência fui seguindo o Miguel, lá estava ele, Marco, nas bancadas, no coração de um pai e de milhares que deambulando por entre treinos e corridas vivem e revivem coisas que só eles e entre eles se guardam para sempre.

Sabendo onde e como iria acontecer, ainda assim desejei que aquela trajectória não fosse tão impossível, tão imprevisível, tão insuportavelmente fatal.
Sic, Marco, filho de Paolo que um dia terá sido, tem de ter sido, o seu técnico de equipa quando se tem seis ou sete anos e se começa a sonhar…
Em Misano, escuto Rossi falando a uma TV acerca do seu capacete na corrida que iria disputar, e onde se escreveu um poema.
Um poema dos Pink Floyd que já todos cantámos, sonhadores e emocionados:

How I wish, how I wish you were here
We’re just two lost souls swimming in a fishbowl year after year
Running over the same old ground, what have we found?
The same old fears, wish you were here.

Parei por instantes as imagens, acho que chorei ali quieto, e naquele momento decifrei um pouco, um pouco apenas, do sagrado espaço onde agora me aventuro no palavrear, como se que apenas agora tenha interiorizado em emoção o som do silêncio cúmplice no sorriso de coragem desta gente das motas, de quem nelas anda desde sempre, e tão novato sou eu por aqui, tão novato e tão cada vez mais emocionado.
I wish I was there, poderia cantar sem mentir.

É hoje terça -feira e já ali à frente teremos corrida, imagino o que não será quando estiver a desfiar os dias de uma semana algures em Novembro e lá na ponta observar Portimão, o AIA que já me encantou, quando olhar para aqueles dias azuis e laranja e neles me imaginar no meio da multidão, um só entre tantos, cantando Miguel e sendo Oliveira.
Tenho de confessar-vos uma coisa, nada que não devam já ter palpitado, cheguei tarde por aqui, noutros lados onde também se vivem tribos e se é gente de alguém, por esses lados sempre devotei alma, crença e braços ao alto em prol de um ideal comum.

Sou, desde pequeno, gente do mundo da bola.
Mas afianço-vos, com a mesmíssima sinceridade que emprego na admissão de meus fraquíssimos conhecimentos nesta arte, que não há dia em que não busque e arregimente reforços para as bancadas deste lindíssimo mundo.
O vosso.
I wish I was here, since ever, poderia cantar sem mentir.

E agora, venha Misano.