No Reino da Metamorfose e outras coisas
Queixava-se a Rainha Dona Amélia de que o povo que usufruía dos seus Dispensários, Lactários, Cozinhas, Sanatórios e outras benesses, era o mesmo que nas ruas destratava a Família Real, pedindo-lhe as cabeças, salvo seja.
Digamos que esquecido um poucochinho de sua pobreza franciscana numa sociedade sem rei nem roque, logo cada qual se enchia de preparos e dedos acusatórios, pouco cuidando do porquê das coisas.
De umas e de outras!
Perguntar-me-ão porque trago Amélia ao barulho.
Por nada,
E por tudo.
Num País em que a bola é rainha, onde por mais que o peixinho dourado nade e dê à barbatana tem por destino a mesma lenga de sempre, não deixa de ser um feito heróico alguém atingir e pertencer a uma elite de pouco mais de uma dezena de supra-mega dotados, numa outra modalidade que apaixona milhões no mundo inteiro.
Nesse aspecto, poderíamos até pensar que Miguel mereceria coroa e cognome, mas não é por aí que Amélia chega até nós, antes sim pelo facto de que após a inimaginável chegada de um piloto de velocidade à categoria máxima a nível mundial, após um trabalho notável junto de uma equipa histórica (Tech 3), a assinatura por uma equipa de fábrica como piloto principal, equipa essa vista como uma das mais sérias candidatas ao título no ano que vem, após a vitória num GP histórico, o noningentésimo no mundo MotoGP, depois de escutar uma lenda viva, Valentino, considerá-lo um dos potenciais dominadores da cena nos próximos tempos, passado que parece ter sido todo este rol de cartões de visita, eis que chegamos a Misano e na sequência de um décimo primeiro lugar na corrida toda uma série de questões parece assaltar e fazer sair debaixo das pedras uma horda de opinadores de pacotilha, sábios de juntar água.
Tal como na morte, onde o morto não dá pela coisa e apenas os outros se apercebem da nefasta realidade, também no destrambelho opinativo pode dar-se a situação do próprio não se aperceber de tão desolador papel, cabendo à sociedade em geral o aconselhamento à terapia salvadora para o pobre diacho.
Vamos por partes, passemos do dispensário e dos sanatórios de uma Lisboa em início de século a uma Riviera de Rimini em tempos de Mundial sem Marc Marquez.
Ponto um, a ausência do supracitado extra-terrestre, que faz da Honda dos últimos a Honda do primeiro, fez com que nascessem putativos candidatos ao título em modo geração espontânea:
El Diablo Quartararo, o menino bonito com dores de crescimento nesta sua passagem a homem de barba rija e Dovi de Forlimpopoli liderando um pelotão onde Viñales e Rossi querem muito estar, onde Mir e Bagnaia querem muito estar, onde Morbidelli e Binder fazem muito por estar e onde todos nós sonhamos que Oliveira, o odontólogo voador pode estar.
É isso mesmo que acabaram de ler.
Ponto dois, no seu segundo ano de MotoGP, após um ano inicial com um trabalho ímpar que levou uma Tech 3, orfã de dados numa KTM que desconhecia em absoluto, a tornar-se uma equipa desejada e competitiva, eis que Miguel começa a ser assíduo na Q2 e nos lugares Top 10 das corridas, pois chegados aqui é seguirmos o conselho que um dia nos deixou Guterres e é fazer as contas, repare-se, são quatro Yamaha, mais quatro Ducati, quem diz quatro diz cinco pois Zarco parece ter feito renascer uma da falecidas, mais duas Suzuki e duas Hondas, por pudor incluímos apenas as de Naka e Cal já que o segredo de velocidade das oficiais está guardado num cofre e o senhor que tem a chave está fora, mais ainda as duas KTM oficiais, ora isto tudo somado dá a bonita soma de quinze unidades de competição adversa à vontade de Miguelito.
E o que nos responde ele?
P8 que à altura igualava o seu melhor, uma desistência, P6 que soube a pouco, outra desistência, P1, numa vitória sacada na astúcia em tiro certeiro de sniper impiedoso e numa perfeita gestão de corrida e agora P11.
Ponto três, agora que está na hora de a onça beber água, quando as coisas caminham para a possibilidade de podermos chegar a Portimão com o nosso Falcão voando no bando, ele agora é ver o caudal de conhecedores, ajudadores, prestadores, sabedores, analistas do detalhe desconhecido, desvendadores do mistério mecânico, gurus da aerodinâmica e quejandos, gente que surge e debita sentenças com a certeza em duas premissas:
Primeira, se estiverem errados não se estrepam a trezentos à hora, a mazela vai-lhes ao ego, e mesmo assim para muitos não faz mossa, pois o dito é de andar inchado.
Segunda, se a bojarda não acertar na baliza, facto bastante provável, manter-se-ão ainda assim sãos e salvos, ignorados em seu sofá, sem imposto para pagar.
É nestas horas que dou graças a deus por minha ignorância no métier, o que me dispensa da apresentação de aconselhamento técnico ao interessado MO88, mas que me permite por outro lado inteirar-me das sugestões e lições que diariamente alguns lhe oferecem.
Nesta última corrida parece ter feito escola na Corrente dos Iluminados, a teoria que lhe aponta o arranque após o semáforo se apagar como sendo o calcanhar de Aquiles, perdão, de Miguel.
À imagem, presumo, de quando anteriormente lhe traçavam a não qualificação directa à Q2 como obstáculo aniquilante.
Dá-me ideia de que gente assim, bafejada pela ciência clara da obra por fazer, nasceu com uma panóplia de botões ON/OFF que liga e desliga à medida do problema, como se que para a tarefa de se chegar ao céu, por exemplo, em lugar da trabalhosa e ineficiente Torre de Babel, bastasse ter accionado a patilha do ‘ sobe, sobe sem parar’ e pronto, dava-se o desafio por vencido.
Creio bem que a estes teóricos de gabarito helicoidal, oportunidade lhes desse D. Manuel I (só para voltarmos a usar a monarquia em ajuda ao texto) e por certo meia dúzia de cábulas entregariam a Vasco da Gama, poupando-lhe não as décimas de segundo que tanto jeito dão ao Falcão, mas umas semanas a menos na longa travessia pelo alto mar.
Alguns de vós acharão que exagero, são livres de o pensar e dizer.
Mas proponho-vos, tragam lá Amélia de novo e perguntem-lhe, a ver se ela não me dá razão.
Ao Miguel, a quem por certo estas palavras nem chegam, dar-lhe-ia apenas um conselho que de técnico tem nada, e lembrando-me do que ele mesmo disse a Miller.
Lá para Novembro que todo o circo do MotoGP se cuide em Portimão.
O AIA será a TdF.
Toca do Falcão.