Agora que a poeira assentou sobre o GP de São Marin, olhemos para trás para o caso ‘Fenatigate’.
Na segunda metade da corrida de Moto2 em Misano, Stefano Manzi e Romano Fenati envolveram-se numa escaramuça pelo 12.º lugar. Depois de vários ‘chega p’ra lá’, um irritado Fenati colocou-se ao lado de Manzi e com a mão esquerda apertou-lhe a manete de travão. Podia ter resultado num acidente grave, mas felizmente isso não aconteceu.
Foi uma manobra deliberada – se foi premeditada ou impulsiva, é irrelevante – e não tem qualquer desculpa ou justificação. Foi um acto sujo, anti-desportivo e altamente condenável. A manobra de Fenati foi desencadeada por outras de Manzi, e um par de vezes ambos foram parar fora de pista. Mas por muito que Manzi tenha tido uma pilotagem agressiva ou perigosa para com o seu compatriota, a reacção deste foi totalmente desproporcionada e sem qualquer cabimento neste desporto (ou noutro qualquer). Pouco depois Manzi acabaria por cair, e Fenati também abandonou, dirigindo-se às boxes.
Fenati recebeu a bandeira preta – já depois de ter recolhido às boxes – e foi excluído da classificação; mais tarde receberia duas corridas de suspensão por parte da Federação Internacional de Motociclismo. Mas o principal castigo veio da opinião pública e, pior ainda, dos seus pares. Todos os pilotos não deixaram de condenar veementemente a atitude do piloto; só perante a onda negativa que se levantou veio a público pedir desculpa a Manzi, no dia seguinte. Tarde demais.
A condenação pública veio também da sua equipa, que não perdeu tempo. A Marinelli Snipers Team na manhã seguinte à corrida anunciou a rescisão de contrato com o piloto italiano «pelo seu comportamento anti-desportivo, inqualificável, perigoso e prejudicial à imagem de todos».
MV Agusta condena e afasta-se
Fenati tinha sido anunciado no final de Agosto como piloto da MV Agusta no regresso da marca italiana ao Mundial em 2019. Na segunda-feira depois da corrida, Giovanni Castiglioni, patrão da marca, manifestou a sua opinião no Instagram. «Isto foi a pior coisa e a mais triste que eu alguma vi vez em corridas. Um verdadeiro desportista não age desta maneira. Se eu fosse a Dorna iria bani-lo das competições». E logo de seguida a MV Agusta emitiu um comunicado informando que Fenati, afinal, não seria o seu piloto em 2019.
A Federação Internacional de Motociclismo convocou Romano Fenati para uma audiência. A Federação Italiana de Motociclismo retirou-lhe a licença desportiva.
O assunto teve um impacto mediático tão grande que a CODACONS (coordenação de associações de protecção ambiental e direitos dos utentes e consumidores em Itália) enviou uma missiva ao Ministério Público de Rimini pedindo a avaliação da atitude de Fenati, indagando se esta poderia configurar «quaisquer infracções penais relevantes, incluindo a tentativa de homicídio, e no caso proceder contra ele com a acção criminal considerada apropriado».
Depois disto tudo, Romano Fenati escusa de ser banido do desporto, como muita gente, incluindo alguns pilotos, achava. Não só ele próprio se auto-excluiu, como mais ninguém quer estar associado ao seu nome. Voltará a trabalhar na loja de ferragens do avô, na sua terra-natal de Ascoli Piceno, planeando também voltar à escola.
Passado conturbado
Não foi só a manobra grave e tresloucada de Fenati que levou o caso a atingir estas proporções. O piloto italiano tem algumas manchas no seu currículo. Para além de muito gesticular e protestar contra outros pilotos ao longo da sua carreira, outras atitudes mostram a personalidade impulsiva de Fenati. Pior do que isso, no GP da Argentina de 2015 Fenati primeiro pontapeou Niklas Ajo em pista; depois, quando pararam no final da sessão para treinar a partida, o italiano desligou a moto ao finlandês. No ano seguinte seria primeiro suspenso pela sua equipa, a SKY Racing Team VR46, no GP da Áustria por «comportamento repetido que não está em linha com as regras disciplinares da equipa»; depois seria mesmo despedido. Alegadamente Fenati entrava em sérias discussões com os mecânicos e esse comportamento não foi mais tolerado.
Em 2012 tinha tido uma altercação com a polícia de Ascoli Piceno, acusando um agente de lhe ter passado por cima do pé com o carro. Fenati e o avô tinham parado a carrinha junto à sua loja para descargas, bloqueando uma rua. Depois de uma discussão, as versões de Fenati e da polícia diferem. O piloto diz ter sido atropelado, o comandante da polícia diz que isso não aconteceu, Fenati é que tentou agredir o agente…
Tentativa de homicídio?!
Quanto às alegações de ‘tentativa de homicídio’, não me parece que fosse essa a intenção do italiano. Claro que o seu acto poderia ter resultado na morte ou ferimentos graves de Manzi. O castigo ‘oficial’ pode ter sido brando, apenas duas corridas de suspensão, mas o seu futuro está selado. Creio que nenhuma equipa ou patrocinador quererá ter o seu nome associado a um piloto que criou esta imagem de si próprio. Por isso se calhar podemos parar de massacrar o italiano. Pode ser que já tenha aprendido a lição.
Já houve quem fez algo de gravidade semelhante, teve uma penalização menos pesada, foi campeão do mundo à custa dessa manobra e hoje é muito acarinhado no paddock. Loris Capirossi e Tesuya Harada chegaram ao último GP de 1998 a discutir o título de 250 cc; estavam separados por apenas 4 pontos. No GP da Argentina, no circuito Oscar A. Galvez, em Buenos Aires, Capirex e Harada lutaram pela vitória. A luta acabou a quatro voltas do fim com o italiano a atirar o japonês para fora da pista. Harada não terminou a corrida; Capirossi foi segundo, mas devido à manobra foi desclassificado da corrida. Como nenhum deles pontuou, e como os 25 pontos da vitória de Valentino Rossi não eram suficientes para bater Capirossi, este foi campeão.
Em 2004, no Phakisa Freeway, na África do Sul, Fonsi Nieto também tentou travar a moto de Toni Elias. Mas não conseguiu alcançar a manete da Honda do seu compatriota.
Com má fama mas sem penalizações
O decano jornalista espanhol Juan Pedro de la Torre teve a paciência para compilar as penalizações impostas aos pilotos nos últimos anos e chegou à conclusão que Romano Fenati, apesar da fama, nunca foi penalizado. Para além disso, apear de haver, desde 2014, 12 pilotos penalizados por provocar a queda de outro – às vezes resultando em lesões para a vítima -, outros há que cometeram o mesmo ‘crime’ e ficaram impunes.
A atitude de Romano Fenati é inqualificável, e deveria ter um castigo exemplar. É preciso passar a mensagem, estas manobras não podem ser toleradas. Fenati recebeu a penalização mais severa imposta até hoje a um piloto do mundial, duas corridas de suspensão. Mas o pior castigo aconteceu na praça pública e acabou com a sua carreira. O sonho de um dia vir a ser campeão do mundo, esfumou-se, agora que caiu em desgraça. Resta-lhe o consolo de ter sido vice-campeão de Moto3, tendo conquistado 10 vitórias. O problema é que não será pelos seus feitos desportivos que será recordado…