Texto Alan Cathcart • Fotos Kevin Wing (Buttonwillow) e Larry Chen (Pikes Peak)
As corridas de motos são inerentemente perigosas; mas não existe corrida mais perigosa no planeta do que a anual subida a Pikes Peak, realizada no Colorado desde 1916, o segundo evento de desportos motorizados mais antigo dos Estados Unidos depois da Indy 500, e o mais antigo envolvendo motos, até agora. A corrida começa nos 2743 m de elevação, e sobe ao longo de 19,99 km e 156 curvas até aos 4302 m de altitude na Montanhas Rochosas.
Embora haja tentativas simbólicas de dotar algumas curvas com barreiras metálicas e até AirFence, existem ainda inúmeros precipícios desprotegidos. Mesmo conduzindo uma normal moto pela estrada estreita, como eu já fiz, é uma experiência assustadora. No dia 30 de Junho do ano passado Rennie Scaysbrook, de 36 anos de idade, alcançou a sua ambição de quatro anos de se tornar no Rei da Montanha. Fê-lo ao vencer Pikes Peak em 2019 com uma Aprilia Tuono 1100 V4 Factory, depois de três anos aos comandos de uma KTM, tendo terminado duas vezes em segundo, e uma em quarto. Tornou-se no primeiro australiano a vencer o evento, batendo o recorde do percurso por uns expressivos 4,662 s, estabelecendo o tempo de 9’44,963, e cumprindo o objectivo de bater as outras entradas oficiais da Ducati, BMW e KTM ao vencer a Heavy Weight Division. Tragicamente, porém, o seu rival mais próximo na luta pela vitória absoluta, Carlin Dunne, também com 36 anos, e vencedor de quatro edições anteriores do evento, morreu depois de inexplicavelmente cair na última curva aos comandos do protótipo oficial da Ducati Streetfighter V4, inscrita na categoria Exhibition.
O australiano tem sido um semi-membro da família Cathcart desde que veio morar connosco em Inglaterra com apenas 11 anos. A minha amizade com o seu pai Jim – o primeiro australiano a correr no campeonato americano de MX 500, assim como companheiro de equipa de Mike Hailwood na Ducati no TT da Ilha de Man, no seu regresso à competição em 1978 – levou a que Rennie e eu nos tornássemos também grandes amigos. Como tal, eu fiquei inicialmente horrorizado quando fiquei a saber em 2016 que ele tinha decidido correr em Pikes Peak; e conseguiu mesmo persuadir a KTM North America a apoiá-lo com o empréstimo de uma 1290 Super Duke.
Depois de conquistar a pole, caiu quando liderava por cinco segundos, e recuperou para terminar em quarto, 27 segundos atrás do vencedor, o francês Bruno Langlois com uma Kawasaki Z1000. Rennie voltou no ano seguinte, e a KTM colocou-o na equipa oficial com Chris Fillmore, que obliterou o recorde da corrida ao vencer, com Rennie em segundo a oferecer a dobradinha à KTM. Em 2018 ele regressou na esperança de à terceira ser de vez com a KTM Super Duke, mas apenas para sofrer a desilusão de terminar em segundo atrás de Dunne com a Ducati Multistrada, por uns meros 0,692 s, batendo a barreira dos 10 minutos pela primeira vez no resultado mais renhido de sempre em Pikes Peak.
«Essa realmente doeu», diz Rennie, «por isso não havia qualquer dúvida em regressar em 2019 para tentar bater o Carlin. Mas isso significava mudar de marca, principalmente porque a KTM não ia construir-me uma moto nova, uma vez que tinham a versão 2020 da Super Duke a sair. Então comecei à procura de quem poderia ajudar-me, quando Shane Pacillo da Aprilia me perguntou se eu estava interessado em fazer a corrida com uma Tuono 1100 Factory. Eu tinha apenas uma resposta: ‘Absolutamente!’». Pacillo é o relações públicas e gestor de eventos da Piaggio Americas, e observou a forte compensação publicitária que Ducati e KTM tinham obtido com o sucesso em Pikes Peak com alguma inveja. «O carácter da Aprilia tem tudo a ver com competição», diz ele, «e o mercado americano precisa de tanta representação em eventos importantes aqui como na Europa. Então sugeri aos meus patrões apoiar o Rennie aqui e em Itália, e eles gostaram da ideia».
Rennie tinha muito claro como queria vencer com a Aprilia, e isso envolvia contratar Jeremy Toye como chefe de equipa. Toye, com 38 anos, é amplamente reconhecido como um do melhores pilotos americanos de corridas em estrada de sempre, tendo corrido no TT da Ilha de Man, terminado no pódio no GP de Macau e vencido Pikes Peak em 2014 na Kawasaki Ninja ZX-10R que ele próprio preparou. «Eu queria o Jeremy a bordo para Pikes Peak porque eu sabia que ele sabia o que era necessário para vencer», diz Rennie. «Eu queria especialmente a sua participação no que diz respeito ao chassis, porque eu acho que tínhamos a KTM demasiado rija em 2018. Por isso fomos na direcção oposta e tornámos a Aprilia numa moto muito mais complacente, e calculei que com um pouco menos de binário do V4 comparado com a V-twin, para conseguir ser rápido em curva era melhor dar-lhe um pouco mais de parecença com uma moto de estrada». Então uma Tuono 1100 V4 Factory foi enviada para a oficina de Toye em São Diego, para ser preparada, com várias peças canibalizadas de uma RSV4 Factory. A Aprilia optou por não usar a sua superbike de estrada porque na Heavyweight Division de Pikes Peak apenas podem alinhar motos de produção que de origem montam um guiador de uma peça só.
Com avanços em vez de guiador, apenas podem alinhar na categoria Exhibition Prototype, essencialmente uma classe Open que recebe tudo. Os louros do marketing para os fabricantes vêm da vitória na Heavyweight Division. O motor V4 a 65° de 1078 cc da Tuono foi deixado completamente de origem, mas com a montagem de um escape Akrapovič de titânio que consta do catálogo de acessório da Aprilia. Depois de muito experimentar a equipa optou por uma relação final ultra-curta de 15/54, em vez da 15/42 de origem! É o tipo de relação final escolhida por stunt riders, mas Rennie tinha uma boa razão para o fazer. «No teste dos pneus que fizemos no início desse mês, eu pensei ‘isto é tão lento!’», explica ele. «Sabíamos que tínhamos exactamente 170 cavalos ao nível do mar, mas a 2743 m de altitude tínhamos 160 quando desenhámos o primeiro mapa, e então deparámo-nos com problemas de alimentação. Quando alterámos o mapa para corrigir a alimentação, perdemos mais oito cavalos. Conseguimos recuperar até aos 162 até ao dia da corrida, mas era uma grande quantidade de trabalho para a malta completar. Então decidimos baixar a relação final para que as três primeiras mudanças passassem num instante, e eu passaria a maior parte do tempo nas três mudanças mais altas, à excepção dos ganchos, feitos em primeira velocidade, para sair rápido da curva. Funcionou; acho que só conseguimos 224 km/h, com sorte, mas chega lá mesmo muito depressa!» Foi no chassis que Toye passou mais tempo, transformando a rápida Aprilia naked numa moto de corrida.
Toye montou a forquilha Öhlins NIX30 Ø43 mm, totalmente ajustável e 5 mm mais longa da RSV4 Factory, assim como o amortecedor traseiro TTX35, também da superbike de estrada, depois de ter considerado usar o kit de cartucho antes de concluir que não era necessário. «A minha maior preocupação com a Aprilia era que não ia ter distância livre ao solo suficiente », diz Rennie, «especialmente com a quilha que escolhemos. Isso roubou um pouco de espaço livre, mas o amortecedor traseiro também é 10 mm mais longo. Quando inclinamos, especialmente em Boulder Park, há uma série de ondulações que raspam no fundo da moto quando lá passamos». As suspensões mais longas resolveram o problema da distância livre ao solo, que derivava do facto de Rennie ter optado por afinações muito suaves na Aprilia. Descobri isto por mim próprio um par de meses depois da sua vitória, quando ele e Shane Pacillo trouxeram a vitoriosa Aprilia até à Buttonwillow Raceway, no vale central da Califórnia, perto de Bakersfield, para eu a experimentar no circuito de 4,99 km com 12 curvas, na primeira vez que a moto voltou a rodar depois de ter cruzado a meta como vencedora.
Devo esclarecer as coisas e dizer já que é minha convicção que a Tuono 1100 Factory é a melhor moto de estrada para o mundo real que o dinheiro pode comprar actualmente, depois de ter coberto várias centenas de quilómetros por toda a Itália aos comandos de uma, incluindo alguns track days.
Por isso eu já imaginava que Scaysbrook & Co. nem se preocupassem em preparar o motor, apenas colocando o seu vasto binário e apetite por rotações a seu favor. Isto inicialmente provou ser um pouco difícil para a equipa durante os primeiros treinos em Pikes Peak, como explica Rennie. «No modo Race com a ECU de origem, as válvulas do acelerador simplesmente não abriam ao ritmo que eu queria», diz ele. «Eu abria o acelerador, e não acelerava a nenhum ritmo parecido àquele que eu queria, e isso estava a prejudicar-nos».
A Aprilia tentou ajudar enviando de Itália vários mapas por e-mail, mas era tudo trabalho de adivinhação, por isso para o terceiro dia a fábrica italiana enviou o engenheiro Nicola Marcato, há 10 anos na pesquisa e desenvolvimento de motores de produção em Noale, e que também corre no seu tempo livre, para resolver o problema. E resolveu!… «O Nicola chegou com uma ECU vermelha mapeada pela Marelli para substituir a que vem de origem parecida com um iPhone», diz Rennie. «Ele ligou-a no terceiro dia de treinos, e transformou completamente a moto. Ele afinou- a para a corrida, depois instalou o mesmo mapa na ECU de origem, porque ele tinha que levar de volta a ECU Marelli com ele».
O assento é um pouco mais alto (845 mm contra 825 mm de origem) e tem uma posição de condução mais espaçosa que na Tuono de origem que eu usei para re-aprender o circuito, reflectindo a maior altura de Rennie. Mas isto, a par do guiador plano que está ligeiramente inclinado para nos podermos esconder melhor atrás do ecrã nas rectas, permite-nos manejar a moto com grande facilidade, especialmente em curvas apertadas. Não precisamos de nos pendurar dela para a fazer curvar melhor, por isso não foi tão física de pilotar quanto esperava – mesmo naquelas temperaturas.
No entanto, compensa fazer toda a travagem em linha recta, se possível, e depois curvar tarde de modo a ter espaço na saída para uma decente aceleração. Isto porque travar forte muito inclinado, e especialmente com o travão traseiro no ângulo, faz com que a Aprilia tente levantar-se e a sobre-virar, o que depois temos que con-trariar com um bom puxão no guiador e mudando o peso do corpo no assento. É melhor evitar isso, se possível. No entanto, a travagem é fenomenal, graças ao melhor equipamento Brembo, com dois discos de 330 mm mordidos por pinças M50 Monobloc radiais, com uma bomba mestra radial e tubos em malha de aço, com o ABS Bosch desligado. Apenas um dedo na manete é suficiente para abrandar a Aprilia de sexta para terceira, a caminho da primeira curva cega de Buttonwillow, onde a maneabilidade da Tuono nos transmite confiança para escolher precisamente a trajectória em cada volta, depois de a ter aprendido ao seguir os pilotos locais dos track days.
Ali, apesar da embraiagem deslizante, consegui algum efeito de travão-motor ao reduzir até terceira antes da pequena subida no modo Race que Rennie diz ter usado para a corrida. É ali que o efeito de travão-motor programado por Nicola Mercato surge, e assim que aprendemos a tirar partido dele, é muito eficaz. Basicamente, do limitador às 12 500 rpm a descer até às 9000 rpm a Tuono vai essencialmente em roda livre, mas daí para baixo, até às 4000 rpm, que é o mais baixo que queremos ver este motor funcionar para conseguir uma saída forte e sem sacões, existe um crescendo constante no efeito de travão-motor. Isto não só ajuda a parar a moto, como também nos traz até ao vértice da curva, com a embraiagem deslizante preparada para ajudar a evitar qualquer saltitar da roda traseira. Para mais, praticamente não há sinais de instabilidade, mesmo quando travamos inclinados, o que causa algum afundamento da suspensão dianteira, devido à afinação macia, mas não à custa de controlo direccional.
Este glorioso motor é tanto uma jóia na moto vencedora de Pikes Peak como nas motos que usei nas minhas voltinhas em Itália. O motor V4 começa a mostrar sérias prestações assim que a agulha do conta-rotações chegas às 5000 rpm, e a aceleração do motor começa a subir mais depressa. A partir das 7000 rpm a aceleração é explosiva – é a única palavra que podemos usar – no modo Race que Rennie usou para a corrida e com o pico de binário às 9000 rpm, descobri que é quando a roda dianteira começa a querer levantar preguiçosamente do asfalto à saída das curvas em segunda. Ainda bem que tinha o amortecedor de direcção bem afinado; o Rennie tinha desligado o controlo anti-cavalinho, assim como afinou o controlo de tracção para o nível 1. Mas depois, mantendo a mudança, às 10 000 rpm há outra dose de potência que nos catapulta para a frente, enquanto o motor se dirige ao limitador de um modo muito satisfatório e decididamente dramático. A quarta velocidade com a relação de transmissão de Pikes Peak foi especialmente útil em Buttonwillow e que, graças às vasta gama de binário, eu conseguia manter numa boa parte do circuito sem sacrificar a saída.
Inicialmente tive que me obrigar a usar pelo menos uma mudança acima daquela que usaria normalmente, devido à relação final curta, mas a flexibilidade da Tuono e a sua gama de binário, com 122 Nm às 9000 rpm, torna muito menos importante a mudança que usamos. No entanto, compensa fazê-la subir de rotação até ao limitador, porque há mais potência lá em cima a que compensa aceder. A suspensão macia apenas se notava realmente sob forte travagem, quando a transferência do peso era algo a ter em conta. Tentei usar o travão traseiro através da manete do polegar e fiquei impressionado; é bom para manter a roda dianteira no chão à saída das curvas lentas, mas o melhor de tudo era usá-lo antes de apertar o travão dianteiro. Isto carregava a suspensão traseira antes da transferência de peso para a dianteira, resultando numa abordagem mais equilibrada às curvas, e tornando mais fácil manter a velocidade em curva.
Infelizmente a Aprilia Tuono RSV4 não poderá repetir o feito de Pikes Peak, pois após a trágica morte de Carlin Dunne, foi infelizmente confirmado que não haverá corrida de motos em 2020. Rennie Scaysbrook, tinha planeado por isso correr na Ilha de Man, mas a edição de 2020 já foi cancelada por causa do coronavírus.
Ficha Técnica
APRILIA TUONO V4 1100 FACTORY | |
PREÇO | n.a. |
MOTOR | Quatro cilindros em V a 65°, 4T, refrigeração por líquido |
DISTRIBUIÇÃO | Duas árvores de cames à cabeça, 4 válvulas por cilindro |
DIÂMETRO X CURSO | 81 x 52,3 mm |
CILINDRADA | 1077 cc |
POTÊNCIA MÁXIMA | 175 cv/11 000 rpm |
BINÁRIO MÁXIMO | 121 Nm/11 000 rpm |
EMBRAIAGEM | Multidisco em banho de óleo, deslizante |
CAIXA | Seis velocidades |
FINAL | Por corrente |
QUADRO | Dupla trave em alumínio |
SUSPENSÃO DIANTEIRA | Forquilha telescópica Öhlins Nix30, Ø43 mm, curso n.d., totalmente ajustável |
SUSPENSÃO TRASEIRA | Sistema monoamortecedor, amortecedor Öhlins TTX36, curso n.d., totalmente ajustável |
TRAVÃO DIANTEIRO | Dois discos de Ø330 mm, pinças Brembo M50 monobloco de 4 êmbolos de montagem radial, ABS desligado |
TRAVÃO TRASEIRO | Disco de Ø220 mm, pinça Brembo de 2 êmbolos, ABS desligado |
PNEU DIANTEIRO | Pirelli Diablo Superbike 120/75R420 em jante de alumínio forjado de 3,5” |
PNEU TRASEIRO | Pirelli Diablo Superbike 200/60 x 17 em jante de alumínio forjado de 6,0” |
COMPRIMENTO MÁXIMO | n.d. |
LARGURA MÁXIMA | n.d. |
ALTURA DO ASSENTO | 840 mm |
DISTÂNCIA ENTRE EIXOS | 1450 mm |
GEOMETRIA DE DIRECÇÃO | 24,7º/99,7 mm |
CAPACIDADE DO DEPÓSITO | 18,5 litros |
PESO | 170 kg, c/ óleo e água, s/ combustível |
ANO DE CONSTRUÇÃO | 2019 |
PROPRIETÁRIO | Piaggio Group Americas Inc., Costa Mesa, California, USA |