Andaluzia, o apelido da família Jerez
Sexta-feira, fim de tarde.
Não há memória de coisa assim, devo poder afirmar sem ter de consultar os mais antigos nisto, num espaço de sete dias, somados os treinos livres, os cronometrados, os aquecimentos e as corridas de quatro categorias diferentes, as eléctricas também são gente!… a quantidade de motos a acelerar, travar, entrar e sair das boxes, cair, levantar, sacudir a gravilha e prosseguir, a quantidade de motos vista por uns quantos ao vivo e por uns milhões através de tv’s, redes sociais, app’s e outros malabarismos da tecnologia deve ter atingido níveis que dariam para engarrafar o IC19, mais a 2ª circular, a VCI e a N125.
Jerez mais Jerez é igual a dose dupla de algo que já nos faltava sobremaneira, que provocava carência em demasia tal que chegáramos ao ponto de imaginar a tragédia repetitiva de um peixinho dourado que nada, nada, nada e… nada!
Escrevo estas primeiras linhas sexta-feira, dia 24, quando Miguel fez P6 na FP1 e nos deixa com vontade de desembrulhar já o sábado, como se ele estivesse já arrumado numa peúga que deixámos na chaminé.
Numa sexta-feira em que Rins e Cal, regressados à pista depois de complicadas situações físicas, andaram a dominar suas manadas de cavalos com a mesma frescura física de cowboys convalescentes após noitada no saloon.
E, por isso encetei já a prosa, sem termos visto ainda o inimaginável duplo M, Marc Marquez, entrando na liça depois de ter fracturado o úmero, ter ido ao doutor, depois ao ‘quirófano’ e de novo ao doutor, para simplesmente e menos de sete dias após uma corrida insana, onde errou, encantou e voou rumo ao posto médico, para, dizia eu, regressar ao asfalto, olá cá estou eu, como se fosse uma brisa contínua.
De loucos.
Haveriam Alex, Cal e Marc de ter esperado por consulta num Centro de Saúde em Portugal, e talvez regressassem em Jerez sim, mas de 2023.
Coisas de privilegiados.
Domingo, meio da tarde, prossigo o escrito.
Recomeço a crónica com as mãos embasbacadas por uma inspiração que não sai de uma curva que por acaso era a primeira.
Queria falar-vos de um sábado maravilhoso, com uma manhã que culminou numa intimidade única com o meu telemóvel- estava na rua- uma coisa de sonho, rezas e paixão, seguindo no Live Timing a Q1 e Q2, ambas deliciosamente servidas por um Miguel que nos encanta e faz sonhar.
P1 na Q1, rima e trouxe alvoroço nos nossos corações.
Dez minutos de Q2, e ainda sem Oliveira por ali, ele lá saberia, isso era lá com ele, interiorizávamos, descansávamo-nos ainda que desassossegados, e ei-lo, de rompante com um tempo canhão, P4 quase até ao fim, chegou Rossi e passou a P5, ainda assim uma coisa de divindades do além.
Que tão grande Miguel nos andas a sair, e fomos ao fim do dia dormir descansados, sabendo esperar-nos um maravilhoso domingo por entre amigos e vaticínios, todos eles merecedores de ti Miguel, a amizade e os palpites promissores.
13h00, tudo pronto, nós contigo.
As luzes encarnadas apagam-se, Miguel arrancou, nem bem nem mal, antes pelo contrário, como diria alguém que não sei precisar, pode ter perdido uma ou duas posições, talvez três, vá lá, mas ali vai, rumo a uma corrida onde sabemos que tem ritmo e estratégia para podermos esperar de tudo.
E tudo é… tudo!
Primeira curva, passados os primeiros trezentos metros da mais elementar justiça dos deuses da velocidade, Falcão no topo lutando pelo que é seu de dom e de direito, passada esta distância que já revi cem vezes em sua majestosa beleza, eis que alguém é abalroado, da enorme mancha colorida de pilotos em fúria despachada um sai tombado, empurrado, aniquilado em seu sonho, sem a mais pequena sombra de chance ou irreversibilidade, tudo termina ali.
Miguel Oliveira terminou seu primeiro Grande Prémio de garras postas num tudo que poderia ser tudo mesmo, terminou-o na sua primeira curva, que falta de poesia, que ofensa ao sonho, que prosa que se me rasgou em inspiração assim esbofeteada.
Todos, e todos somos milhares de milhares, todos escorregámos pista fora naquele momento, os corações que batiam na adrenalina do sonho baldearam-se para a fria paisagem de tão inverosimílimo destino.
Não. Não. E não.
Isto foi o nosso uníssono, estou certo, desdigam-me se exagero.
Não quero ver mais nada, nem mais um centímetro galgado por nenhuma daquelas motos, naquela corrida que passou para mim a cenário fantasma, sei que também para todo um mundo de outros como eu, que somos mais e cada vez mais, de gente que voou com o MO88 naqueles trezentos metros mais lindos da história da MotoGP, e sei que talvez aqui abuse um pouco, mas curo assim um pedaço deste vazio que me invade.
Incomoda-me naquela hora o fantasma Zarco, sei que sabem do que falo, quando sangrava frustração, quando saí disparado rumo à porta da rua para fugir e correr clamando aos céus, na hora invectivando o deus da injustiça por sua desnecessária crueldade.
Mas fiquei, talvez porque sofrendo entre pares mais rápido se me enxugasse o pranto, talvez porque nós não desistindo saiba Miguel que poderá olhar para sua bancada nos momentos de nuvens mais escuras e nos saber por lá, agradeço a quem me refreou tão precipitada desistência que me levava num torpor de miséria.
E vi então Fabio ser cada vez mais um menino homem, Valentino regressar a uma ribalta que tem tantos v’s de vitórias suas.
Vi Franco Morbidelli encostar uma lindíssima corrida ao muro de suas lamentações, vi o sonho de Pecco esfumar-se literalmente, quando a sua Ducati pouco se apiedou de final tão frustrante.
Antes, a treze voltas do final de um GP que tanto quis e não quis ver, senti a estranhíssima sensação de ver cair Binder, para mim o parceiro de Miguel, e pensar que por linhas tortas se escrevia direito, admito com vergonha que na altura terei sido complacente com a escolha de tal destino, mas talvez seja apenas a minha total ignorância nestas coisas a não querer aceitar que aquele abuso de milésimos na travagem da primeira curva tenha resultado de uma análise menos acertada de um adversário entre os muitos que naquele molho de guerreiros se arrumavam no funil.
Recordo que tantas foram as vezes que Brad ganhou numa moto que Miguel construíra em tardes de minúcia e sabedoria, de preciosos dados transmitidos por mãozinhas sábias, revejo as voltas lançadas em que Binder seguia na corda de Miguel rumo ao tempo canhão, sei que ambos se olharão e compreenderão e que a vida continua.
Miguel é Miguel, chegou ao terreno virgem da Tech 3 e junto com eles desbastou enormidade de caminho, ajudando a Fábrica Mãe a subir seus passos rumo ao trono que persegue, o Falcão entrega laboriosa pesquisa dos limites sem cair do escadote, passando pela ‘casa da partida’ e recebendo os dois contos, os mais velhos entender-me-ão, ele é fiável e permite construir o todo da cidade com sólida perspectiva.
Quis pois eu chorar e desistir naquela curva, os amigos puxaram-me à razão, perguntaram-me, por certo com mórbida curiosidade, o que iria eu escrever … pois então cá vai.
Obrigado pro me terem ensinado a ficar.
E posso então repetir ao nosso Oliveira, estamos aqui, estaremos sempre por aqui, para nós hoje ficaste em 2º, e só não ganhaste porque Quartararo está feito um homem crescido.
Que alto já voas Miguel.
E que venha Brno.