Contas à Valenciana
Cheste, 6, 7 e 8 de Novembro.
Três dias a refogar intermitências.
Sexta-feira pela fresca, lume brando, um P8 que andava por ali nem sendo carne, tão pouco peixe.
Queríamos mais, isto agora o pessoal exige com pouca parcimónia.
Sexta-feira, hora de almoço, nova moeda nova voltinha, o pessoal de tabuada numa mão e Borda d’Agua na outra, ele há que saber se vai cair água na FP3 e qual é a melhor hora para jogar as fichas todas, e assim lá acabaria o dia a setenta e oito milésimas da Q2 directa, a pessoa pela noitinha já nem foi dormir totalmente descansada, sabendo que na Q1 poderia o diabo tecê-las e, com semelhante desconsideração, vermos atormentada parte da força anímica com que suportamos as agruras destes tempos difíceis, em que as corridas do Miguel nos injectam de moral e adrenalina.
Chegou sábado, por estes lados ela, a água, caía que deus a mandava, esperávamos que ao menos a descarga durasse toda a santa manhã, que no molhado o Falcão nada bem, passe o desconchavo, é pássaro anfíbio, assim sabemos, recolhe asa e mete barbatana, desliza salpicando beleza nas curvas e gás na aceleração, aí vai ele, aí vamos nós, chegou a FP3 e tirou as medidas, viria a FP4 e já tinha o corte no molde, à chegada da Q1, essa temida prova dos valentes a que só assistem sem tremer os mais ousados, pois na Q1 saiu coelho da cartola, coisa à caçador, tiro certeiro e com promessa de sobremesa.
Eis-nos pois na hora da verdade, a que já vamos estando tão habituados que ao vê-la perdida de imediato rogamos praga e emitimos opinião abalizada, querendo, requerendo e protestando em posse dessa garantia de que se fosse à nossa maneira outro galo cantaria, eis-nos no sábado pós hora de almoço numa Q2 em que a pista ia secando, secando, com ela evaporando umas mezinhas que em posse de Miguel o poderiam levar para mais perto das duas linhas da frente, onde juramos jurado que o haveremos de ver e há de ser em breve.
Em breve e em grande.
Tudo despachado então nessa questão de ‘quem é quem’ à frente dos semáforos, Oliveira na P7 após subir um lugar por penalização de Aleix, a corrida viria prometedora, restava saber se para o escorregadio, se para o seco.
Veio seca.
Pelas 13h00 de domingo, alinhado cada um em seu lugar, todos teremos olhado ao deus das largadas, na esperança de que ele nos devolvesse sorriso apaziguador e… assim foi, assim aconteceu, sorriso devolvido com carimbo e aprovação.
Finalmente, satisfazendo toda uma corrente de pensamento que afirmava ser importante arrancar bem, tal como o soldado, que anunciando La Palice morto, o fez vivo nos dez minutos anteriores, assim comprovando a sua sensatez, Miguel pegou em si e desembestou-se sem medos.
Um + 1 = 2.
De P8 no sábado a P7 na grelha, de P7 a P5 e logo de seguida a P4 no arranque, isto nas primeiras voltas, de repente está todo um universo de gente a mudar de gravata, passamos do salão geral ao banquete dos eleitos, máquina de calcular na mão e ala que aqui vai disto, segue receita para ganhares Miguel, decifra nossos devaneios por telepatia, deixa lá os placards informativos da equipa e arrisca nesta quântica que te levará nosso saber, nunca antes um piloto teve tanto treinador, isto já nem é o caso de teres ‘personal trainer’, tu possuis mesmo é uma ‘crowd trainer’ homem, não te desleixes…
Tal como no arroz, à valenciana, a malta pega nuns pedaços de entremeada, junta-lhe um par de lulas e umas gambas vestidas a preceito e toma lá bolachas que agora é refogar, tapar, deixar ir em lume brando e são mais quarenta minutos que passam num instante, curva, acelera, deita, levanta, insiste, insiste…
Só que… não!
Mir fortíssimo, Rins que esperneia e não esmorece, uma dupla numa Suzuki equilibradíssima, dificilmente encontraríamos quem no domingo e por aquelas bandas pudesse ombrear com aqueles dois, mais ainda porque a Joan não só o chamava a quase certeza de colocar mão e meia no ceptro, como lhe dava ganas o pessoal que o acusava de ser campeão sem vitórias.
A fechar o pódio estaria Pol, recordemos que há dois anos por ali conquistou a mesma posição à chuva, na altura algo meio impensável para uma KTM que gatinhava ainda, e a seguir ao espanhol chegaria Nakagami que ainda há quinze dias havia espantado as hostes sacando uma ‘pole position’ que de novo fez tremer de emoção os nipónicos que anualmente produzem aos quilogramas e contentores de potenciais campeões.
E quem, posto isto, chegaria depois, defendendo ciosamente seu lugar, conquistando um ponto mais em sua renda de bilros tecida em crua serapilheira, de duríssima precisão exigida a dedos calejados por surpresas e algumas insuficiências típicas de quem está em equipa satélite e não na equipa sol?
Miguel Ângelo, esse mesmo, não o Buonarroti Simoni mas o Falcão Oliveira, o que a nós traz mais tremuras em nosso coração de adepto seguidor, Miguel esse que viria a explicar a toda a plateia de seus apoiantes, críticos e analistas, que uma questão de menor aderência resultante do diferente peso na mota em virtude do consumo de combustível viria a tornar o bicho tão instável que por mais de uma vez ele ameaçara deitar-se, escorregar e não mais se dispor à batalha.
Eloquente, não?
Repetindo a sua segunda melhor classificação deste ano, marcando a sua presença no TOP 6 pela terceira vez nas últimas cinco corridas, chega a dar vontade de perguntar àquele pessoal coca-bichinhos se acaso não fariam melhor em sair à rua e buscar Pokémons, quem sabe até gambozinos, assim melhor ocupando seu tempo e melhorando sua terapia de embirração gourmet!
Dizem de Miguel que ele isto e aquilo, analisemos-lhe então seu curto percurso por este restrito pedaço que acolhe os melhores entre os melhores, a classe rainha de MotoGP:
Após um ano inicial em que, atente-se, era ele rookie e a sua equipa estreava sua parceria com a KTM, trazendo zero vezes zero de informação na sua base de dados, fazendo de cada circuito um exame prático das qualidades de Miguel em transmitir sensações e soluções, quando ainda assim somou trinta e três pontos, superando largamente a pontuação de seu companheiro de equipa e de pilotos como Zarco e Lorenzo, eis que o Falcão chega ao seu segundo ano e desata a prometer qualificações para a Q2, o que começou a acontecer com alguma regularidade e deixou até de ser emoção digna de registo, saca sete corridas com classificação no TOP 10, nas quais se inclui a inédita e extra-terrestre vitória em Estíria, onde a Tech3 viu recompensada vinte anos de esforços e árduo trabalho e disso deu testemunho ao nosso menino.
Ah mas o Miguel, mas ainda assim, ah eu estive a ver e acho que… ora bem, bendita liberdade que a todos permite suas análises, imbuídas, não duvido, da maior generosidade e provindas de benfazejas almas, mas tenho para mim, e corrijam-me se estiver muito fora da coisa, de que Miguel terá em sua sebenta tomado as devidas notas, após anos, anos e anos em lutas desiguais e onde mostrou e provou sua anormal capacidade para o ‘métier’.
Mas isto sou eu que, se calhar, pouco dado serei a achismos.
Venha de lá Valência, em dose dupla de seu arroz e de suas contas, e esperemos que, como de costume, Oliveira colha ao sol o que semeou em chuva.
E nós com ele.