Texto e Fotos: Henrique Saraiva/Viagens Ao Virar Da Esquina
São 8.30h da manhã! À minha frente, na outra margem, a Cova do Vapor. A jusante, o ilhéu do Bugio. A montante, lá ao longe e envolta por alguma neblina matinal, a Ponte 25 de Abril. A primeira! Esperavam-me mais de 400km. Não assustava… mas o ritmo seria lento pelo tipo de estradas a percorrer e pelas inúmeras localidades. Previa cerca de 8 horas de condução. No total, foram quase 12 horas. A data escolhida antecipava uma das maiores canículas deste Verão. Promessa cumprida pelo S. Pedro, esse meu inimigo figadal! A partir de Santarém, o termómetro não baixou dos 40º, com um largo período nos 42º… E, para que a coisa ainda tivesse mais piada… uma moto improvável: a Suzuki Katana!
Esperavam-me as 13 pontes e 2 barragens que o Tejo tem. 10 pontes foramcomo rodoviárias, sendo a mais antiga a de Abrantes – inaugurada em 1870 – e a mais recente a das Lezírias – de 2007. Outras 3 eram de inicio ferroviárias e, depois de desativadas, passaram a servir o trânsito automóvel: a das Mouriscas de 1881, a de Constância de 1888 e a de Muge de 1904. Passaram para rodoviárias respetivamente em 1992, 1988 e 2001. No total, 5 pontes do Sec XIX, 6 do Séc XX e 2 já no novo milénio. As barragens, que permitem a passagem, as únicas do Rio Tejo em território nacional, são as de Belver e Fratel, construídas respectivamente em 1952 e 1973.
A caminho
Às 8:30, tomei o caminho mais rápido para a Ponte 25 de Abril, pela A5 junto ao Jamor. Evitava portagens e também maior tráfego que me poderia atrasar. A vista do tabuleiro da 25 de Abril é deslumbrante. Inaugurada em 1966, une as duas margens no chamado “gargalo do Tejo”. Obra fundamental para toda a região que antes estava limitada à travessia fluvial, desde logo se tornou um dos ex-líbris da capital. Muitos anos mais tarde (previsto desde o início) incluiu a ferrovia. Com 2,3km e 190m de altura é uma das maiores do mundo do seu género. Segui pela A2, EN10 e finalmente a A33 que me conduziu à Ponte Vasco da Gama. A mais extensa da Europa – 17km – e uma das maiores do mundo. Aqui paguei a primeira portagem do dia. Inaugurada a tempo da Expo98, tenho o privilégio de a ver todos os dias da janela de casa. Quase faz parte da família… Daqui, IC2, A1 e EN10 até Vila Franca de Xira. Esperava-me a Ponte Marechal Carmona. Inaugurada no final de 1951, teve a primeira portagem em Portugal, pois o Governo assumiu que deveria ser paga pelos seus utilizadores. Assim que ficou paga… a portagem extinguiu-se! Estranho… Tem cerca de 1,2km e custou, à época, o que hoje seriam 650 mil euros.
Aqui terminei a primeira parte do percurso: “Urbano”, porque na realidade, o rio banha nas suas margens parte significativa da malha urbana da Grande Lisboa. Na outra margem, iniciei o percurso das “Lezírias” e que se prolonga até Constância… lá chegarei! Em Samora Correia apanhei a EN118 que me acompanhou até ao final do dia de forma intermitente. Pouco adiante, o acesso à A10 que me levou à Ponte das Lezírias, a mais recente. Com 12km é a 3ª maior da Europa e faz a travessia sucessiva de 2 rios: o Tejo e o seu afluente Sorraia. Neste pequeno percurso paguei a 2ª portagem do dia. Saída imediata rumo a Vila Nova da Raínha, Azambuja, e Valada do Ribatejo.
O objetivo situava-se 3 km mais à frente desta simpática povoação ribeirinha: a Ponte Rainha D. Amélia, ou Ponte de Muge, datada do início do século passado como ferroviária e convertida à rodovia em 2001, tem sentido único alternado e foi o primeiro exemplar típico da “Arquitectura do Ferro” que atravessei. Em Muge retomei a EN118 até à A13 e à Ponte Salgueiro Maia. Com 4,3km, inaugurada em Junho de 2000, fica situada a jusante de Santarém. Tem a curiosidade de não ser iluminada para não interferir com um aeródromo nas proximidades… Assim cheguei a Santarém! Atravessei a cidade e rumei à ponte que leva o seu nome…mas que de facto se chama Ponte D. Luis I. Mais uma ponte de ferro, inaugurada em Setembro de 1888. E como gostamos muito de nos “posicionar” no mundo… cumpre dizer que à data da sua construção era a maior da Península, a 3ª da Europa e a 6ª do mundo… Alpiarça e Chamusca ultrapassadas, cheguei à Ponte da Chamusca (famosa por uns “achamentos” recentes…). De seu nome Ponte Dr. João Joaquim Isidro dos Reis, fica a meio caminho entre aquela vila e a Golegã. Na Golegã esperava-me o António Rebelo que simpaticamente se ofereceu para me acompanhar neste pedaço do percurso. Foi o meu cicerone no almoço ligeiro e depois na paragem no espetacular Castelo de Almourol.
Por falar em motos
Quando surgiu a oportunidade de levar esta moto fiquei apreensivo. A sua configuração poderia ser incómoda. Puro engano! O encaixe foi perfeito, a posição elevada do guiador transmite confiança na condução e acima de tudo, naturalidade na postura, que não castiga nem a “espinha” nem os pulsos. A proteção aerodinâmica é suficiente para as velocidades praticadas. O pequeno defletor por cima da ótica cumpre a missão. A velocidades para lá dos máximos legais… não há milagres. Esta não será a moto ideal para estas viagens porque não tem capacidade de carga… e será pecado mortal adaptar-lhe malas ou caixotes. Francamente… ela não merece que lhe estraguem a beleza das linhas. E digo isto porque ao vivo é muito mais bonita do que as fotos mostram. Opinião subjetiva, eu sei! O maior contra é a autonomia. Não esbanja o líquido precioso – fiz mais de 700km e média de 5,1l/100 – mas o depósito é pequeno. 12 litros dizem!
Torna-se incómodo estar a fazer paragens sucessivas e é melhor planear o percurso para não haver azar. Em andamento? A inserção nas curvas não será a mais linear mas, habituado, não constituiu qualquer problema. Agora à saída… meus amigos!!! Os 150cv, um pneumático195 e um motor com binário que nunca mais acaba é fantástico. O 4 cilindros sobe desde as 3000rpm sem qualquer hesitação até quase ao infinito, sendo que o infinito – o red line – está nas 11500! Nas mudanças superiores provoca aquela adrenalina que gostamos. E nas mudanças baixas, saímos das curvas que nem um foguete… e com uma banda sonora a sair do escape a condizer.
De volta à estrada
A seguinte foi a Ponte de Constância. Mais uma antiga ponte ferroviária, datada de 1888 e onde os comboios passaram até 1959. O mau estado de então, levou à construção de uma nova ao lado. Mais tarde, as autarquias de Barquinha e Constância aproveitaram-na para o trânsito rodoviário em 1988. Tem um único sentido alternado e é mais um exemplar da “Arquitectura do Ferro”.
Em Constância terminou a parte do percurso que designei por “Lezírias”. A partir daqui, a orografia do terreno torna as estradas mais sinuosas e em permanente sobe e desce. Chamar-lhe-ei “Divertido”. Da Ponte de Constância, passando pelo Tramagal (onde o António regressou a casa) e até ao Rossio ao Sul do Tejo diverti-me com as curvas do Tramagal, que eram o terror dos automobilistas antes da era das autoestradas. A verdadeira diversão começou aqui e só iria terminar mesmo no final da jornada.
Estas curvas, com bom piso, são uma delícia. Cheguei ao Rossio ao Sul do Tejo e quando parei para a foto da ponte de Abrantes, encontrei 2 companheiros que estavam a descansar. Percorriam a EN2. Os 42º faziam-se sentir ao parar e, quando na moto, o “bafo” era diabólico. Não havia água que resistisse. Surpresa minha, os rapazes, oriundos da Benedita, estavam ensopados. Tive pena deles… Estariam a levar uma sova, nos seus fatos. Engano!!! À boa maneira portuguesa, um deles tinha uma habilidade quase milagrosa: sabia ligar a rega do pequeno jardim onde estávamos. Já tinham tomado duche… vestidos! Segui o exemplo… Abençoados! Quando à ponte de Abrantes, é a mais antiga desta viagem: inaugurada em 1870. Contornei Abrantes até Alferrarede e aqui, uma das surpresas do dia: a EN3 que me conduziria até Mouriscas. Esta EN3 foi estabelecida pelo Plano Rodoviário de 1945 e era, neste, a terceira estrada de Portugal por ordem de importância depois da EN1 (Lisboa-Porto) e EN2 (Chaves-Faro).
Com início no Carregado e fim em Castelo Branco. Percebe-se bem a lógica desta estrada projetada, como sendo a principal via transversal do País. As autoestradas e a falta de visão levaram a que esteja hoje toda desmembrada e em alguns troços desapareceu mesmo. Mas se toda a EN3 fosse como este pedaço que percorri…só vos digo: um deleite de condução! Seguiu-se a 11ª travessia: a Ponte das Mouriscas com dois tabuleiros paralelos, rodo e ferroviário, data de 1992. Mas a ponte original, para comboios, foi construída em 1881. Novamente na EN118, passei Alvega e Casa Branca onde virei para a primeira barragem: a de Belver. Construída em 1952 e destinada à produção elétrica, está dotada de uma pequena eclusa para a passagem dos peixes que irão desovar mais a montante mas que consta não ser verdadeiramente eficaz.
Na sua albufeira, num braço de rio logo a seguir ao paredão e na margem direita, está a Praia Fluvial da Ortiga. Foi uma tentação… Continuei em registo de curva e contra curva até chegar a Belver. O Castelo é imponente. Situado num monte fronteiro à vila, dum lado, e com o Tejo aos seus pés. Belver tem a característica única de, por pertencer ao concelho de Gavião, ser a única parcela do Alentejo na margem direita do Tejo. Percorridas as ruas estreitas e em empedrado, inicia-se a descida para a Ponte de Belver. O cenário é fantástico. Inaugurada em 1907 e recentemente restaurada, tem no seu final um acesso ao passadiço em madeira que ao longo de 2km na margem do rio, nos leva até à Praia Fluvial do Alamal. O troço de estrada que vai da Ponte de Belver até à sede de concelho, sinuoso e a subir, deixou- me novamente na EN118. O pedaço que se seguiu, ao longo de quase 20km é sempre a direito. Com rapidez encontro o IP2.
O final da jornada
Um pouco antes de Arez, a EN118 entronca no IP2. Viro à esquerda, para a Barragem do Fratel, a penúltima travessia. O fim estava próximo. Esta Barragem, construída em 1973, é fundamental tal como a de Belver, para o controlo do caudal do Tejo para lá da produção de eletricidade. A sua construção submergiu um núcleo importante de pinturas rupestres e ainda um troço do muro de sirga do Rio Tejo. É também um ponto de passagem obrigatório para quem vem de norte, Beira Alta e Beira Baixa pela A23 e aqui inflecte rumo a sul.
Neste ponto decidi refletir sobre o caminho a seguir. O objectivo era a última travessia, a Ponte de Ródão. Tinha duas formas de lá chegar: – a primeira, o caminho previsto, implicava seguir pela A23 (porque esta se sobrepôs à antiga EN3 que desapareceu em alguns troços não deixando alternativa) e pagar as respetivas portagens até ao desvio para Vila Velha de Ródão e depois descer até aquela vila e ao rio. Seriam 28 km, pouco interessantes. – a segunda, subverter o principio da alternância de margens, regressar até ao cruzamento de Arez, aqui virar para Nisa e de seguida pela EN18 até à Ponte de Ródão. Percurso sempre por estrada, com a enorme vantagem de percorrer integralmente o espetacular troço de 18km da Serra de Nisa. 34km no total, pouco mais que a primeira opção, mas muito mais divertido. Optei pela segunda. E não me arrependi! Deleitado com a EN18 cheguei ao espetacular cenário da Ponte de Ródão. Inaugurada em 1888, sempre foi essencial na ligação da Beira ao Alentejo e vice-versa. Acresce ainda a magnífica vista do rio e da garganta natural que ali o aperta no seu curso: as Portas de Ródão.
As 15 travessias estavam concluídas! Faltava apenas o troço final até ao ponto onde o Tejo é exclusivamente nosso: a Barragem de Cedillo. A tarde ía avançada, o cansaço atacava e alguma desidratação. O calor, impenitente, tinha sido violento ao longo de toda a jornada. Implicava cuidados redobrados na condução pois a forma fisica já não era a melhor. Alguns minutos de descanso, regressei por onde tinha vindo: EN18. Mas só até meio pois virei para Montalvão. Estradas municipais, estreitas, em bom estado. Sinuosas, sem trânsito, pelo meio da serra de Nisa. A desertificação do interior é real. Não se vê vivalma.
A partir de Montalvão, 7km a descer até à Barragem de Cedillo. É uma barragem curiosa. Sendo espanhola, as suas duas extremidades estão assentes em território português. Situa-se no local em que o Rio Sever desagua no Tejo, pelo que a albufeira se espraia pelas bacias dos dois rios. Estamos na fronteira com Espanha e parte do tabuleiro é atravessável, permitindo a entrada no país vizinho… mas só ao fim de semana! Estava concluído o desafio.
POR ESTE RIO ACIMA chegava ao fim. Eram quase 20h. O dia tinha sido tórrido e tornou a jornada, que no papel não era complicada, num verdadeiro desafio à resistência fisica. Mas um desafio só o é, se for difícil. E as coisas fáceis não têm o mesmo sabor. E a Katana? Impávida e serena, como quem pede mais… Assim se cumpriu este desafio de Viagens ao Virar da Esquina!