As viagens de moto de longa duração são momentos de verdadeira introspeção para o motociclista aventureiro que se “faz à estrada”. E isso torna-se ainda mais verdadeiro no caso de Miguel Rodrigues, que aos 57 anos e aos comandos da sua Honda Africa Twin, com a qual já percorreu mais de 150.000 km, decidiu explorar as magníficas paisagens da Austrália para celebrar os 500 anos da chegada de Cristóvão de Mendonça ao continente do Hemisfério Sul.
Nesta viagem Austrália 360°, que teve início no passado mês de abril, o motociclista luso descreve os seus dias em cima da sua Africa Twin em formato de diário de bordo, de forma a salientar que esta é uma viagem solitária, tendo apenas a sua consciência como companhia.
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Airlie Beach amanheceu com temporal com muito vento e chuva, e foram essas condições que te acompanharam em todos os 650 km percorridos. Um dia muito difícil, mas conseguido.
Lembras-te dos camiões-comboio? Pois hoje era vê-los com três atrelados, verdadeiros comboios da estrada do Mad Max! As ultrapassagens têm que ser feitas com muito boa visibilidade, atendendo ao seu comprimento e à velocidade de cruzeiro que atingem.
Hoje deves pernoitar em Hughenden, amanhã esperas chegar a Mount Isa.
26 de abril, 3ª feira
Hoje foi um dia com pouca chuva e com paisagem monótona. Bastaram uma dezena de retas para cumprir os 510 km até Mount Isa, onde fiz a manutenção à mota, com mudança de óleo e filtro. Pronta para mais uns milhares de quilómetros.
“Trabalham todos para o mesmo patrão!…”, pensavas ontem, divertido, ao deixar Mount Isa para trás com destino a Tree Ways. De facto, todos os habitantes desta cidade mineira envergam a mesma farda!
Quando chegaste a Tree Ways ficaste menos divertido: o que te parecera na Internet ser uma boa opção de paragem (até pelo preço elevado que podia ser sinónimo de qualidade), revelou-se mais um fiasco. Não que tivesses grande alternativa, mas não era preciso o destino esmerar-se tanto: quarto paupérrimo, porta da casa de banho transportável, pois não tinha sequer dobradiças. A água mais parecia chá mal coado, de tão amarela e com tanto folículo.
De bom só tinha a gasolina, porque a mota não se queixou! A vontade de sair de lá era de tal ordem que às 20h já dormia e às 6:30 já fugia de mota a sete rodas!
Retomaste hoje a Estrada nº1, após o pequeno bypass feito em Território Norte, e contas manter este percurso até Perth. O alvo da tua flecha, Miguel, é hoje Katherine, cidade com alguma importância e seguramente com mais escolhas que nos dias anteriores.
Aqui tens que parar a memória para não esqueceres a Isabel, aquela amiga de infância do teu cunhado que vive em Brisbane e a quem ele te recomendara. Assim, ao passares nessa cidade, ligaste a dizer que estava tudo bem e que ias seguir viagem para Norte. Já então ela te foi dizendo o que já tinha verberado ao teu cunhado: que eras um tolo, que a norte do estado de Queensland tinha havido cheias, que as estradas estavam muito más, e mesmo assim eu ia meter-me ao caminho – enfim, pensei eu, uma mamã preocupada!
E desde então tens mantido a prática de filho extremoso que todos os dias lhe contas o que se passou na escolinha da estrada. Curiosamente, quanto mais te aproximavas do Território Norte (NT), mais o tom de preocupação e os conselhos da Isabel aumentavam, chegando ao ponto de te dizer que quando chegasse a Katherine guardasses a mota no quarto! Pensaste “estas mulheres são umas exageradas…”.
Mas ao chegares a Katherine sem hotel marcado, logo deparaste com um ambiente estranhíssimo: presença policial inusitada, gente muito estranha a deambular pela cidade (aborígenes), com muito, mas mesmo muito mau aspeto. Ao fazeres a busca de motel pelo preço, logo concluíste que devias inverter o critério: o mais caro é o que te convém!
A cidade transmite pouca ou nenhuma segurança. Ao tentares comprar umas cervejas numa BWS (cadeia de lojas de bebidas alcoólicas), logo foste barrado pela polícia que te questionou e te pediu a identificação que tinhas no motel onde correste a buscar o passaporte. Quando regressaste ao local do crime para comprar as ditas tiveste que mostrar o passaporte, esperar que fosse digitalizado enquanto aquecias as cervejas nas mãos suadas de calor e ansiedade! Nunca foras confrontado com tanta exigência, mas também não foi por isso que te souberam pior…
No final do dia, o teu anjo da guarda liga-te. A Isabel quer pormenores da viagem e das minhas impressões de Katherine. À medida que vais desfiando os teus pecados, apercebes-te de que ela vê em ti um herói que inesperadamente sobreviveu a riscos incomensuráveis na travessia do Território Norte!
Que os casos que ali acontecem não chegam aos noticiários internacionais. Que as distâncias percorridas sem ver vivalma, sem ter qualquer recurso, com temperaturas sempre muito altas e com tribos aborígenes a viver por lá, fazem deste percurso uma das estradas mais perigosas do continente Austráliano. Na verdade, sentiras o risco de passar uma grande extensão desertificada, e até te preveniste com reforço de água, com poucas paragens. Inclusivamente, sempre que avistavas um carro, ultrapassava-lo para que tivesses sempre mais uma possibilidade de ajuda atrás de ti.
Felizmente, a sorte protege os audazes e tudo correu sem qualquer percalço. Se soubesses de tudo isto, voltarias a fazer o mesmo?, perguntava a angustiada Isabel. Sim, era o trajeto mais lógico! – foi a tua resposta que te marcou para sempre como rematado louco na classificação dessa boa amiga…
Chegado a Darwin! Cedo, com 330 km percorridos e uma vontade enorme em escapares ileso de Katherine. Com o contacto que vais tendo com gente de cá, percebes agora melhor o fenómeno de concentração de Aborígenes nestas cidades. A proibição da venda de álcool nas regiões onde oficialmente vivem os Aborígene teve o efeito perverso de os concentrar nas cidades, locais onde podem saciar o vício – o qual foi ironicamente instilado pelos colonizadores em nativos com intolerância genética ao álcool…
Darwin é a capital do estado Território Norte. Não é tao grande quanto te pareceu à entrada: o porto de mar é francamente grande, mas com movimentação de mercadorias inexpressiva. A vontade de te refrescares no mar de Timor esbarra com um sinal vermelho: em nenhuma praia de Darwin vês uma toalha estendida. Ninguém vai à praia… por causa dos crocodilos! Mas que não te deixe pena: tão pouco a temperatura da água dá para refrescar! Ficas assim com temperaturas altas, elevada humidade do ar próprios afinal deste clima tropical.
Aqui esperava-te o Fernando, português cujo contacto te fora dado por gente que conheceste em Sydney quando chegaste à Austrália. Ao contactá-lo, percebeste que não ias ficar em casa dele e que já te reservara um quarto no hotel. Logo a seguir percebeste também que te enganaras: o hotel era dele, bem como um empreendimento de apartamentos para alugar.
O Sr. Fernando e a sua filha a Caty são pessoas bem marcadas pelo trabalho e com a felicidade de o sucesso os acompanhar. Logo os condecorei com o cachecol da Grande Ordem Austrália 360º – mereciam por inteiro esta distinção, tal a simpatia e cortesia que me dispensaram na oferta da estadia. Gente simples e de muito bom coração, Miguel! Obrigado.
Já percorreste Darwin nos típicos autocarros Hop-On Hop-Off, passando pelos pontos mais turísticos, reconhecendo as marcas bem visíveis da II Guerra Mundial, nomeadamente dos bombardeamentos do porto pelos japoneses.
Nota de alarme: Amanhã, domingo, 1 de maio, vais passar por Katherine, mas não pernoites lá!! Segue rumo a sul e dá início à etapa Darwin – Perth nesta continuação pela viagem na Austrália.
1 de maio
No dia do trabalhador, Cristóvão voltou à estrada e deixa para trás o inóspito e despovoado Território Norte, grande parte dele sem sinal para telemóvel. Foi mesmo pura autonomia, Cristóvão de Mendonça!
Fizeste 830 km desde Darwin. Ao entrares no estado do Território Ocidental da Austrália, o fuso horário voltou a alterar: agora tens +7 horas do que Portugal.
O dia de hoje ficou marcado pelo calor, o termómetro rapidamente se fixou nos 38/39 graus e não baixou até chegar à impronunciável Kununurra. Esta é uma terra de diamantes onde, para além disso, se descobriu a pólvora: não a dos explosivos, mas a de um segredo na plantação da cana-de-açúcar – dizem-te ser o único local do mundo em que se fazem duas colheitas anuais!
Continuas viagem com destino a Broome, onde esperas chegar na próxima terça-feira. Não sabes se irás encontrar mais postos fronteiriços como o que te surpreendeu ao entrar no Território Ocidental. Aí quiseram saber se tinhas alguns dos itens que iam apontando num cardápio: mel? Nozes? Fruta? Flores? Vontade de sair daqui? Como respondeste afirmativamente apenas à última, libertaram-te de encargos aduaneiros.
Fique atento a www.motojornal.pt pois iremos continuar a acompanhar a viagem de Miguel Rodrigues no Austrália 360.