As viagens de moto de longa duração são momentos de verdadeira introspeção para o motociclista aventureiro que se “faz à estrada”. E isso torna-se ainda mais verdadeiro no caso de Miguel Rodrigues, que aos 57 anos e aos comandos da sua Honda Africa Twin, com a qual já percorreu mais de 150.000 km, decidiu explorar as magníficas paisagens da Austrália para celebrar os 500 anos da chegada de Cristóvão de Mendonça ao continente do Hemisfério Sul.
Nesta viagem Austrália 360°, que teve início no passado mês de abril, o motociclista luso descreve os seus dias em cima da sua Africa Twin em formato de diário de bordo, de forma a salientar que esta é uma viagem solitária, tendo apenas a sua consciência como companhia.
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Aqui ficam mais diários de Miguel Rodrigues na viagem Austrália 360°
30 maio, 2ª feira – Ayers Rock / Coober Pedy – 650 km
Repetes o trajeto no sentido inverso e sorris ao pensar “para não esqueceres que esta etapa foi fundamental até a fizeste duas vezes!…” E também repetes a dose de Coober Pedy, onde já fizeras acampamento-base na ida.
31 maio, 3ª feira – Coober Pedy / Pimba – 370 km
Assim que amanhece, arrancais. Para hoje tinhas planeado um percurso por estrada “nacionais”, embora em piso de terra – conferia-lhe um cunho mais picante, mas completamente exequível.
Ao cabo dos primeiros 10 km em terra, deparas-te com bancos de lama barrenta que rapidamente acrescentavam ao lastro da mota mais de 10 kg de terra barrenta com uma aderência indescritível.
Pelo retrovisor vês o teu companheiro de viagem caído no chão (a lembrar-te outro companheiro em outras viagens!) – mas a culpa não era dele…
Subitamente, percebo que o guarda-lamas dianteiro não resistira a tanto barro acumulado e cedera a meio! Retiraste a parte frontal partida e mantiveste a outra metade para te proteger da lama que era constantemente projetada para o capacete.
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Sem aviso, começas a ter a roda da frente bloqueada e as quedas sucedem-se sem que percebas a razão! Só quando paras, concluis que a tal metade sobrante do guarda-lamas prendia a roda e te atirava ao chão…
O que somava em estragos, subtraía em ânimo! Sempre evitaras os danos materiais durante a viagem, agora lutavas para evitar os físicos. Felizmente, escaparam desses!
Ao cabo de 50 km percorridos neste martírio, tomas a decisão de voltar para trás e repetir a estrada até Port Augusta. Não gostas nunca de repetir percursos, mas a lama não vos dava tréguas, nem alternativa. Em Coober Pedy de novo! Desta vez para lavar a mota e retirar os quilos de barro acumulados e ver com detalhe os estragos.
Trocas a dormida em Marree por uma noite em Pimba, em mais uma “Roadhouse” – uma daquelas bombas de gasolina com uns contentores que oferecem dormida com alguma dignidade. Ainda a lamber feridas, é altura de se refazerem do contratempo. Amanhã, voltar à estrada até Barossa Valey, uma zona se vinhas de excelência, depois de um fado Pimba, nada melhor do que abafar as mágoas num vinho de qualidade.
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1 junho, 4ª feira – Pimba / Barossa Valey – 475 km
Espera-vos um hotel bem simpático, onde jantais e bebeis um vinho excelente que vos dá embalo para um sono reparador. A etapa de amanhã é muito curta que tentareis fazer por estradas secundarias até Adelaide.
2 junho, 5ª feira – Barossa Valey / Adelaide – 80 km
Sem grande madrugada, inicias a viagem por estradas sempre acompanhadas por vinhas a perder a vista, num vale penteado ao milímetro que revelava uma paisagem muito bonita.
A dado momento… O que é isto, Miguel?! Um anúncio de voos de helicóptero?! Entrámos na quinta para ver as opções. Tinham para toda a carteira: voos de 10 min, de 20, até 1 hora. Como nunca tinhas voado de helicóptero, não resististe em sobrevoar a região num voo com uma perspetiva soberba lá do alto. Valeu o dinheiro.
Chegados a Adelaide, ida ao concessionário para ver se tinha as peças que também já tínhamos tido… antes de as estragar! Apenas tiveram sorte com um pisca, o resto teria de ser em Melbourne.
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Com um dia muito cinzento, e sempre a ameaçar chuva forte, deu para conhecer o jardim botânico e dar uma espreitadela ao Zoo para ver cangurus (vivos, ao contrário de tantos que já viras!) de perto.
Os alertas da meteo não são animadores para os dias que se seguem e para o trajeto a percorrer. Aqui, quando há alertas de mau tempo, devem levá-los muito a sério: são mais alarmes que alertas!
4 junho, sábado – Adelaide / Hamilton – 450 km
O dia de hoje acordou muito cinzento, com vento forte e muito frio.
Motos carregadas, fato de chuva vestido, luvas de inverno, todo o equipamento disponível a ser usado. É mesmo fazer um país a 360º! De temperaturas de 40º com graus de humidade elevadíssimos até temperaturas de 5º com vento e chuva.
Ides diretos ao motel em Hamilton e, já depois da rotina de descarregar a moto, foi tomar um duche e ir até um bar beber uma cerveja para descomprimir do dia de condução.
Para jantar recomendaram-vos o Grand Central. É um bar – restaurante com apostas de jogos tão comuns aqui, sobretudo as de corridas de cavalos que já estavam em todos os écrans. Não passou despercebida a reação de frustração de um individuo de boina quando vê o cavalo em que apostou perder a corrida que acompanhava de respiração suspensa.
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Levanta-se, talvez para fumar um cigarro e dá-se um momento mágico MotoJornal! Pergunta se és português, pois vira no casaco o logótipo da MotoJornal e só podia ser! E aqui começa uma conversa imprevista e excecional.
Diz ser o Rui, treinador de cavalos de corrida, natural de Faro, que fora de Lisboa para Macau com os seus pais. O pai até fora o mentor da expedição em UMM de Macau – Lisboa. Depois viera para a Austrália, casara com uma ucraniana, fora para a China treinar cavalos e regressar à Aussie Land – sempre com a mesma paixão dos cavalos.
Em dado momento, referes os apoios nesta aventura, incluindo o do Dr. Ramos Horta de Timor. Os olhos do Rui brilham quando ouve falar no nome Ramos Horta: “É meu tio!”, diz ele, “vamos fazer um vídeo para lhe mandar!”. E logo o enviaram para o Facebook do Dr. Ramos Horta.
Um português em Hamilton?! Ainda por cima, filho da irmã do famoso Ramos Horta?! Este é o fascínio das viagens: o impossível acontece…
5 junho, domingo – Hamilton / Warranambool / 12 Apostoles / Melbourne – 450 km
Noite de grande temporal fazia adivinhar um dia de condução difícil com chuva, vento e frio a não dar descanso. Porém, o dia acordou contido na chuva e logo aproveitaram para começar a tirada que nos levou até Warranambol, onde está um monumento dedicado aos navegadores portugueses. Aí, quais “Marcelos” de moto, tirámos umas selfies com o Vasco da Gama e o Infante D Henrique.
Ainda com tempo seco, mas com ameaça de grande intempérie, ala para 12 Apostoles! Mais uns retratos, equipais-vos e seguis para a meta.
A chuva não tardou em aparecer e com efeitos retroativos…
Chegar a Melbourne foi perceber que estavam 19.000 km percorridos, visitadas seis capitais de estados (Melbourne, Sydney, Brisbane, Darwin, Perth e Adelaide), e ainda uma incursão a Ayres Rock!
Uma viagem que não repetirás, Miguel! Pelo tempo de que foi preciso dispor, pelo orçamento, pela família, etc.
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Mas percebeste também que, para um australiano, uma viagem à volta da Austrália teria no mínimo um ano, e mesmo assim seria um curto período. Questão de escalas! Em Portugal és quase um extraterrestre ao fazer uma viagem destas, na Austrália mais pareces um apressado.
Em modo de balanço, dizes para quem quer ouvir e quem não quer: experiência fantástica, esta de teres viajado a maior parte do percurso a solo, e com grande agrado em teres tido um amigo que te acompanhou na “reta final”.
Uma viagem por um país que não conhecias, com a dimensão de um continente e uma diversidade de paisagens, perigos e atrativos que preenchem a alma de qualquer aventureiro.
Ouves-te a dizer: “Obrigado por me terem acompanhado nesta aventura!”.