Crónica João Pais #18

João Pais, Cronista

Quo vadis Corona?

São três horas e quinze da manhã, está a chegar ao fim a minha travessia do Atlântico, mais uma, foi tempo de ir a São Paulo em trabalho, levar e trazer gente de regresso às suas casas, aproveito o meu tempo de pausa nesta noite e tento encontrar as palavras que exprimirão o espanto, procura minuciosa por poucas coisas nos espantarem já.

São três e quinze, da manhã como vos disse, passei uma volta avião fora, fui e vim, as pessoas dormem sossegadas, talvez apenas semi-sossegadas, em cada dez delas umas sete usam máscara, percorro os metros que me levam a dar uma volta completa, quero confirmar sossegos e assegurar tranquilidade a possíveis noctívagos que mastigam em silêncio os seus medos.

São três e quinze, já vos disse, eu sei, e estes pedaços de quietude num avião cheio e em silêncio dão-me o tempo para imaginar as esperanças e as angústias que povoam esta calma plateia de gente que regressa fugindo da incerteza que corrói mais quando se está longe.
Está em todo o lado um pouco de silêncio.
Um silêncio que encerra histórias que dariam uma boa prosa.
Um silêncio que é no entanto um pouco de poesia.

Trezentos passageiros, será isso mais ou menos, duzentas e muitas máscaras, diria tempos atrás, se me desenhassem este cenário para mais uma noite de profissão, que estaríamos perante uma ficção de alguma série daquelas que trazem episódios de suspense uns atrás dos outros, temporada atrás de temporada.
Ou diria, talvez, que repatriávamos soldados de uma guerra, que talvez se tratasse apenas de uma experiência sensorial em grupo, quiçá coisa religiosa, diria coisas, alvitraria cenários num jogo de adivinhas de adulto curioso.

Aqui e ali o avião trepida, abana um pouco, voa saltitando, parece hesitante aquele gigante, mas afinal como sempre acontece nestas coisas dos aviões quando desafiam o solene espaço da troposfera, que foi coisa criada para os diatribes da natureza, que não para passeios de homem, e o estranho por aqui, meus senhores, é que o medo que de imediato assaltava alguns destes viajantes da noite foi substituído por sonos inquietos respirando através de máscaras que haverão de filtrar o pequeno grande vírus, quem sabe também filtrando íntimas preocupações, substituindo o temor imediato por receios espraiados por um futuro onde não se descortina porto seguro nem terra firme.
Dez minutos, minha gente, dez minutos veio abanando e bem este grandalhão com asas e nem um ser destes que me acompanha mostrou o mais pequeno receio à incerta e saltitante linha que desenha o nosso caminho ares afora.

São agora três horas e trinta e ia aproveitar para vos escrever as habituais linhas em que rodamos à volta de outras voltas, de voos em duas rodas, com turbulências de adrenalina acelerada a fundo e curvada deitada mas reparo, não sem algum espanto, que ainda não saí da box onde me enfiei a semana passada, quer dizer, vim a correr ao asfalto mas foi para recolher gente ao seu recato, não é ainda, e este ainda vai carregado dessa esperança que é a última a morrer, dessa esperança que é a certeza na força de todos nós, não é ainda, dizia eu, chegada a hora de regressar ao futuro recomeçando por onde parou nosso passado.

Valentino, Marc, Andrea, Maverick, Fabio, Alex, Pol, Miguel e todos os outros estão em casa.
E querem-nos a nós em casa.
São tempos de inventadas curvas para eles, obrigando o corpo a acreditar que anda em competição, subindo em flexões, dobrando em abdominais, pedalando em bicicletas que vão sem sair do sítio, quiçá oferecendo o rosto à velocidade máxima do secador para o enganar ao mais ínfimo detalhe.
É tempo, o nosso, de ir estudando novas estratégias para enganar o corpo também, não o deixando perceber que aos noventa e muitos dias sem frisson juntámos agora outros tanto e sem fim à vista.
É tempo de todos nós nos reinventarmos, essa é que é a verdade.

Talvez que as coisas não voltem a ser como eram e nas bancadas onde tantas vezes nos sentámos a viver os nossos eleitos possamos doravante olhar para o lado e manifestar inesperada e profunda curiosidade pelo anónimo igual a nós, aquela turba gigante de mil cores que é afinal o pequeno átomo, a consequente molécula e outras estruturas que compõem um corpo só, talvez seja chegada a hora de viver derrotas e vitórias com o mesmo pundonor de quem cai e se levanta, talvez nos peça a vida que nos lembremos para sempre de como abanámos mas não tombámos e nos seja conferida a eterna glória de termos experienciado um ‘save à Marc Marquez’.

São três e quarenta e cinco, estou agora uns minutos mais perto de Lisboa, o avião já se aquietou ,compôs-se em seu garbo imponente de quem desafia a lei da gravidade, todos por aqui continuam dormindo, as máscaras essas não dormem, filtram e fazem companhia a quem fechando os olhos não percebe ainda o que aí vem.
Deveria pedir-vos desculpa por tão pouca moto no assunto que hoje vos escrevi.
Mas pedir-vos-ei outra coisa, se assim mo permitem.
Fiquem em casa que o futuro quer-nos a todos nós.

Foto: flightglobal.com