Crónica João Pais #8

João Pais, Cronista

Paulo, o pássaro do Dakar

Ao quilómetro duzentos e setenta e seis da etapa sete da tua décima terceira participação no Dakar fizeste-te para sempre um pássaro do deserto, esse que conheceste e ensinaste como poucos, soube dessa tua ascensão quando regressava a Lisboa de avião, quem sabe poderia ter espreitado pela janela e ter-te visto uma última vez, mas não deve ser assim, certos deuses devem ter seus caminhos, e tu és um deles, um deus de tanto herói das areias, de tanto amante da tua arte.

Esta crónica que abaixo segue aos poucos estava escrita, perdeu todo o sentido, pensei, mas depois lembrei-me da etapa em que tendo perdido horas e horas no cronómetro foste tratando de arregaçar as mangas e seguir na luta, eras assim, és assim, deve ser por isso que o único meio que posso usar para te endereçar minha reverência, minha tristeza, é contar-te a história de quem um dia chegou a este teu mundo e conheceu nomes de gente que é tua, gente que és tu… então eis um pouco do que havia escrito ontem, quando a etapa era ainda a sexta e o quilómetro duzentos e setenta e seis era apenas um quilómetro mais… vai aos bocados, meio aos soluços, vai o que deixei sobrar dela…

Parece que foi ontem, lembro bem, acabado de chegar a casa deparo-me com um berbere estilizado e estampado numa t-shirt, na hora achei à coisa uma beleza invulgar, anunciava um rally de todo-o-terreno ligando a cosmopolita Paris a um Dakar que, admito, quase nem sabia onde plantar no mapa, estávamos nos finais de 1981 e nos primeiros dias de Janeiro seria vê-los na estrada por ali fora que para a frente é que era Lisboa, perdão, Paris…

…Naquele momento que dei de caras com o berbere e sua proposta off-road, apresentada por amigo com conhecimentos na União Metalo-Mecânica, que passara para a mesa de operações um projeto trazido de França, um todo-o-terreno concebido por Bernard Cournil e que seu filho Alain levaria à etapa seguinte, começava uma curiosidade que se manteria até aos dias de hoje … seguir a corrida das corridas.

…Sinuosos são os caminhos, admito, mas terá sido naquela longínqua tarde quase quarenta anos atrás que terá começado esta crónica, pois naquele berbere e seu desafio a competição pelas areias encontrei imediata certeza de se tratar de desafio à altura dos mais capazes apenas, e disso trata este escrito, uma ode aos mais capazes, mais audazes,, mais loquazes e outros quases…

1982, lá vão eles, três Uémiémes desembestam areia fora, são a força lusa no evento de que se fala, lá vão eles como se desfraldassem a bandeira das quinas, os metalo-mecânicos em sua robustez, José Megre/Manuel Romão, Pedro Cortês/Joaquim Miranda, e Diogo Amado/Villas-Boas tratariam de chegar ao Lago Rosa, não sem antes passar por Alger, Hassi Messaoud, Tit, Timeaouine, Gao, Toubouctou, Nioro e Tambacounda, e se rijos foram os veículos forjados em terra lusa, não menos o foram nossos homens, Diogo que o diga, haveria de chegar engessado, e nas duas pernas que a coisa não se faz por metades. Herói.

Era o tempo do Paris-Dakar se iniciar em Paris e terminar em Dakar.

Estranho?

Não.

…E o Dakar, que um dia haveria de manter o nome ainda que nessa geografia já nada disputasse da prova, o Dakar iria criar seus mitos, seus heróis, valha a verdade que ganhar provas destas não é propriamente uma tarefa ao alcance daquilo a que chamaríamos cidadão comum, tem de se reunir uma longa lista de preceitos e requisitos nos quais se inclui sem rebuço uma valente dose de loucura.

…Comecemos pelo começo, redundância premeditada, para trazer a lume o nome daquele que tendo sido o primeiro grande vencedor poderá por certo passar despercebido aos leitores que apenas se juntaram à causa já mais para o Verão, que é como quem diz, mais recentemente, em anos de século XXI.

Alan Génestier e Joseph Terbiaut venceriam num Range Rover, Cyril Neveu fá-lo-ia numa Yamaha XT 500 e camiões não os havia ainda.

Prestada a justa homenagem aos pioneiros em pódio de tanto sangue, suor e lágrimas, desfiemos outros que tais, não sem antes explicar que dezenas ou mesmo centenas mereceriam estar aqui, mas contrapondo ao infinito espaço do deserto, um limite do tamanho da prosa obriga-me a cortes na viagem pelo teclado pelo que o critério será o de um leigo, um pobre e comum cidadão que do Dakar apanhava as parangonas e os nomes que se repetiam.

Aceitam?

Vamos lá então.

Ano de 1992, onze anos após a sua primeira vitória em duas rodas Hubert Auriol torna-se no primeiro vencedor em ambas as classes levando um Pajero ao mais alto lugar, abrindo as hostilidades para que os gloriosos garimpeiros de todo o terreno saltassem das suas zonas de conforto.

E se bem o entendeu, melhor o fez um senhor chamado Stéphane Peterhansel, tornando-se num dos nomes incontornáveis desta epopeia, chegando à frente de todos os outros por nada mais nada menos que treze vezes, seis delas numa Yamaha, outras em Pajero, no mítico Mini e em Peugeot.

Monsieur Dakar, que bem lhe assenta o cognome.

Já no menos conhecido mundo das corridas de camiões … um nome ficaria também ele gravado a letras de ouro e vitória, Chagin, o Czar do Dakar, arrebatador de sete títulos da prova… Outro monstro, portanto.

Ano de 1983. Vencedor Jacques Bernard.

Dito assim parece até coisa comum, acrescentemos-lhe mais um nome de família: Ickx, o nosso famoso Jacky, catorze anos de F1, no tempo mágico da infância de tantos de nós…

1987. Vencedor Ari Vatanen.

Quantos se terão arrepiado quando em 1985 na Argentina teve um acidente daqueles em que ninguém sai vivo? Saiu ele, ano e meio depois chegaria ao topo na mítica off-road.

1988, um ano depois de Ari chega Juha, dito assim não espanta muitos, acrescentemos-lhe Kankkunen e aí sim, todos alinham no bruá, um tetra campeão do mundo em rallies a deixar sua marca no Dakar.

…2006 e 2007, Dakar desenhada em Lisboa…

…Era agora chegada a altura em que mencionava os nossos… A caminho de fechar a crónica com gratidão… Trazia os nomes de…

Paulo Gonçalves, Fausto Mota, o Capitão Maio, Joaquim Rodrigues Jr., Mário Patrão, Sebastian Bühler, em duas rodas, nos carros os irmãos Ricardo e Manuel Porém, Paulo Fiuza como navegador do gigante Stéphane Peterhansel, Pedro Bianchi Prata coadjuvando Conrad Rautenbachi e José Martins nos camiões…

…Inevitavelmente o teu nome ali, embelezando-me o texto…

Imagino como estarão agora perdidos de tristeza, todos eles, por não terem o seu Paulo Gonçalves, o seu pássaro do quilómetro duzentos e setenta e seis.

Leio algures que Kevin Benavides completou a etapa que ganhou chorando setenta quilómetros, por um pássaro que não viu ir embora.

Choraremos todos setenta quilómetros também, que cada um saiba encontrar algo para ganhar e te dedicar.

Se de outro modo não sei fazê-lo… Foi reescrevendo parte desta crónica que se atabalhoou, foi levando-a até ao fim que à minha maneira chorei, que com toda a simplicidade e humildade ta dedico.

Que grande és Paulo, o pássaro do Dakar.